Sociedade
Ação orquestrada
Climatologista desperta a fúria de ruralistas depois de apresentar indícios de incêndios criminosos no estado


“Não dá mais para falar em desmatamento zero em 2030. Até lá, pode ser que o ponto de não retorno já tenha sido atingido. O desmatamento zero precisa ser agora”, alerta a climatologista Luciana Gatti, coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, conhecido pela sigla Inpe. Nos últimos cinco anos, ela tem denunciado com veemência a devastação da Amazônia. Desde que o ministro boiadeiro de Jair Bolsonaro começou a “passar a boiada” da legislação antiambiental, a crise climática só se intensificou no Brasil. Por sua combativa atuação, Gatti virou um alvo recorrente dos setores mais atrasados do agronegócio, repletos de negacionistas e oportunistas.
Nos últimos dias, os ataques se intensificaram. Em 15 de setembro, durante uma entrevista à GloboNews, a cientista criticou a decisão do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de indenizar proprietários de terras atingidas por queimadas sem investigações prévias sobre os possíveis responsáveis pelos incêndios. Na avaliação de Gatti, esse benefício pode favorecer os criminosos e deixar pequenos produtores desamparados. Além disso, ela tem muitos elementos para afirmar que os incêndios foram provocados de forma criminosa, porque não houve um número significativo de raios no período, capazes de levar à combustão espontânea das matas. Somente no dia 23 de agosto, os satélites de monitoramento do Inpe identificaram 1.886 focos no estado, e mais de 5 mil no País. “Da mesma forma, não é razoável supor que tantas pessoas tenham acidentalmente jogado bitucas de cigarro acessas perto de áreas secas. Isso foi provocado, e é preciso identificar os culpados.”
Após essa entrevista, o secretário de Agricultura de São Paulo, Guilherme Piai Filizzola, veio a público qualificar as declarações da cientista como “nefastas e criminosas”, e enviou um ofício à ministra Luciana Santos, do Ministério da Ciência e Tecnologia, pasta à qual o Inpe está vinculado, para pedir esclarecimentos. A ação do secretário precedeu uma série de ataques promovidos por dirigentes de associações dos produtores de cana-de-açúcar do estado. “Eu nem tenho ideia do tamanho dessa onda, preferi me preservar, mas colegas estão monitorando isso”, comenta Gatti. Para ela, se o secretário estivesse preocupado com as queimadas, em vez de atacar uma cientista que denuncia a devastação, pediria ajuda dos cientistas para investigar e encontrar os culpados.
Gatti tornou-se alvo de ataques após criticar a decisão do governo paulista de pagar indenizações antes de investigar as causas das queimadas
Apesar da ofensiva ruralista, Gatti não se diz intimidada. “Durante o governo Bolsonaro, eu era monitorada diretamente pela Presidência. Pessoas próximas temiam pela minha vida.” À época, o MCT estava sob o comando do astronauta Marcos Pontes. Segundo a climatologista, era comum que seu diretor no Inpe recebesse ligações de secretários da pasta, aos gritos, pedindo para ele “fazer essa mulher calar a boca”. “Não é tão fácil me calar”, debocha. Pelo contrário, nos últimos anos ela tem estudado para se expressar de forma mais acessível, sem os jargões científicos, a fim de se fazer compreender por mais pessoas. “É muito angustiante saber tudo que eu sei e ver o que está acontecendo sem denunciar, então eu tenho tentado me comunicar melhor com a população.” O repertório é vasto, são 25 anos de estudos no sensível bioma amazônico. Depois de se debruçar sobre o histórico de quatro décadas de medições climáticas, a pesquisadora finalmente conseguiu estabelecer a correlação entre áreas desmatadas, perda de chuva, aumento da temperatura e emissão de CO2.
Agora, Gatti não tem dúvida: a aceleração de eventos climáticos extremos no País – períodos de chuvas torrenciais intercalados com secas prolongadas e altas temperaturas – tem relação direta com o desmatamento. “Pior, a floresta que não foi desmatada está em condição climática altamente estressante. Isso significa que já não tem a mesma resiliência”, explica. De acordo com ela, atualmente, 44% do rebanho bovino brasileiro está na Amazônia. “A área que se dedica ao pasto, na região, é o dobro do resto do País. Trocar floresta amazônica por pastagem para alimentar o mercado de carne bovina é um contrassenso completo”, indigna-se.
“O Brasil tornou-se a fazenda do mundo, está na hora de começarmos a pensar em justiça climática. Tem muita gente diretamente responsável pelos eventos extremos e aumento das mortes da população, e ainda não estamos falando disso”, alerta. O lado bom é que Gatti não está sozinha nessa trincheira. Logo após os primeiros ataques, começou também uma onda de solidariedade da comunidade científica. A moção de apoio e solidariedade que circula na internet já recebeu cerca de 5 mil assinaturas. Entre os signatários estão cientistas ilustres, como Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe, exonerado em 2019 por Bolsonaro depois de defender o trabalho da instituição contra o negacionismo do ex-presidente.
Perseguição. Filizzola classificou as declarações de Gatti como “nefastas e criminosas” e enviou um ofício ao Ministério da Ciência e Tecnologia para constrangê-la – Imagem: Podcast/Alesp
Outro signatário é o cientista Carlos Nobre, laureado com o Prêmio Nobel da Paz de 2007, junto a outros pesquisadores do Painel da ONU sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), por alertar sobre os riscos do aquecimento global. Para ele, não há dúvida de que os incêndios recentes foram provocados pela ação humana, e é preciso diferenciar “incêndio criminoso” de “incêndio ilegal”. No primeiro caso, explica, são ações do crime organizado, com a finalidade de grilar terras e ampliar a área devastada. No segundo, trata-se de produtores que ainda agem à margem da lei, para facilitar as próprias colheitas. “Não faz sentido um secretário do estado criticar o trabalho de uma cientista. Ele tem de reconhecer o problema e buscar formas de combater o incêndio criminoso.”
Nobre explica que a terra devastada é depois utilizada para expandir a área destinada à pecuária e à agricultura. A prática acontece há décadas, lamenta o climatologista, que desconfia de uma reação à intensificação das ações de fiscalização do Ibama e do ICMBio no governo Lula, que resultaram em uma queda do desmatamento na Amazônia. “Essa é uma suspeita minha e de vários outros cientistas. Trata-se de uma guerra, e o crime organizado quer ganhar essa guerra. Por isso, só a ciência não basta. Precisa de uma ampla investigação, com trabalho jurídico e policial para resolver o problema.” Diante das emergências climáticas, é urgente alterar o Marco Legal da Terra no Congresso, para proibir o uso do fogo na pecuária e na agricultura em todo o País, não só em determinados estados, defende o climatologista. “As ondas de calor vão só aumentar e a vegetação estará cada vez mais suscetível a incêndios.”
Renomados cientistas publicaram uma moção de apoio à pesquisadora, que já conta com mais de 5 mil assinaturas
Professor aposentado de História da Unicamp, Luiz Marques foi o autor da moção de solidariedade a Gatti. Segundo ele, a onda de ataques foi surpreendente por se tratar de “um tema bastante específico, contra uma cientista que, apesar de muito renomada na comunidade científica, não é uma figura pública”. Não se trata de um movimento isolado, observa. Desde a retaliação contra Galvão em 2019, a comunidade científica está alerta para esse tipo de ação coordenada. “Por outro lado, tivemos uma resposta muito encorajadora. Em poucos dias, angariamos quase 5 mil assinaturas através de um movimento totalmente orgânico.” Para ele, isso demonstra que os cientistas não vão se intimidar. “A declaração horrível do secretário paulista da Agricultura é uma tática antiga de tentar imputar ao acusador a autoria do crime, mas não vai funcionar.”
CartaCapital procurou o secretário Filizzola, mas a Secretaria da Agricultura respondeu aos questionamentos por meio de uma nota, sem comentar a declaração que causou indignação nos cientistas. O texto afirma que o governo paulista “criou em agosto um gabinete de crise, envolvendo a Defesa Civil do Estado, secretarias estaduais e a iniciativa privada, para prontas respostas aos grandes incêndios que atingiram São Paulo”. •
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ação orquestrada’
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