

Opinião
Artimanhas
Reportagens em tom de fofoca de tabloides vilipendiam a advocacia e o jornalismo


Por ocasião do julgamento da Lei de Imprensa de 1967 nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a atividade jornalística é “verdadeira irmã siamesa da democracia” e que não se pode admitir a censura. Sua relevância para o sistema de proteção de direitos e para a democracia é inegável.
Com efeito, a imprensa é uma importante instância de formação da opinião pública e de irradiação do pensamento crítico e se fundamenta, legitimamente, nos direitos constitucionais à liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. Rememore-se, ademais, que a nossa Constituição, ao dispor sobre a comunicação social, assegurou a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação sob qualquer forma, processo ou veículo.
Assim como a mídia, a advocacia é essencial para a realização dos direitos fundamentais e para o fortalecimento dos valores democráticos. Nos termos previstos na nossa Constituição e no Estatuto da Advocacia, o advogado é indispensável à administração da Justiça, ao passo que, no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.
É nesse cenário que devemos analisar recentes veiculações relativas a determinados escritórios de advocacia. Sem qualquer interesse público que as lastreiem e, ainda, valendo-se do sigilo da fonte constitucionalmente assegurado, determinados veículos estão proliferando matérias – e desinformações – sobre questões de cunho estritamente interna corporis de escritórios de advocacia. Mais especificamente, sem qualquer interesse público justificador de veiculação jornalística, nos causam estranheza matérias que mais se assemelham ao sensacionalismo dos tabloides de fofoca, até então restrito às celebridades.
Servindo, muitas vezes, a interesses escusos, determinados jornalistas valem-se de declarações off the record para proliferar degenerações à advocacia privada, a qual é essencial à administração da Justiça e à democracia. O modus operandi torna-se ainda mais grave na medida em que a veiculação jornalística ocorre sem a garantia de espaço ao contraditório, quase sempre diferido e exercido por provocação. Em outras palavras, o comportamento antiético do advogado que serve de fonte sobre temáticas que deveriam se circunscrever às relações privadas é um artifício que deveria ser rechaçado pela mídia para, assim, inibir a difusão de matérias dessa natureza. Entretanto, o jornalismo igualmente antiético – e, nessa medida, coautor na empreitada – incorre no desserviço de potencializar estratégias de competição e destruição.
Não existe democracia como mero regime político. Não há um Estado democrático numa sociedade que não seja igualmente democrática. É por isso que existem instituições da sociedade civil que são próprias da democracia, como a advocacia privada e a imprensa.
Uma imprensa livre e uma advocacia respeitada são essenciais para a tutela de valores essenciais, bem como para a defesa dos direitos fundamentais. Consequentemente, preservar referidas instituições é essencial para a tutela da própria democracia e do pacto civilizatório.
Matérias jornalísticas baseadas em fofocas de concorrentes e com crítica vazia sobre comportamentos de advogados na atuação contenciosa, bem como na relação legítima de litígio com outros sujeitos processuais deveriam, quando muito, ser objeto dos mecanismos recursais e de impugnação previstos na processualística tradicional e jamais ultrapassar as barreiras dos ritos inerentes à lide.
Não podemos esquecer, ainda, que o Estatuto da Advocacia e o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil preveem que o advogado precisa observar, nas suas relações com os colegas de profissão, o dever de urbanidade, tratando a todos com respeito e consideração. Os valores que lastreiam referidas previsões normativas estão sendo vilipendiados.
A postura de parte da mídia está degenerando a imagem da advocacia, isso com a contribuição covarde e vil de advogados que servem de fonte oculta para veiculações dessa natureza. Adversários no âmbito do processo devem, um em relação ao outro, atuar por meio dos instrumentos processuais adequados e jamais por meio de ataques midiáticos. A comunidade jurídica deve rejeitar, com veemência, incursões dessa natureza, sob pena de irreversível fragilização da profissão e, em escala mais ampla, das próprias instituições da sociedade civil responsáveis pelas bases do pacto social. •
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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