Artigo

Lei da Alimentação Escolar Orgânica patina em São Paulo, município referência em política agroecológica

A Prefeitura tem oferecido apenas cerca de 3% de alimentos orgânicos ou agroecológicos nas escolas municipais, muito abaixo da meta de 60% prevista no plano de ação

Lei da Alimentação Escolar Orgânica patina em São Paulo, município referência em política agroecológica
Lei da Alimentação Escolar Orgânica patina em São Paulo, município referência em política agroecológica
Vozes. Os movimentos sociais têm muito a contribuir nesse debate, a exemplo do MST, que há tempos utiliza os conceitos de agroecologia nos assentamentos – Imagem: Renan Mattos/MST
Apoie Siga-nos no

Apesar de super urbanizado, o município de São Paulo tem 2.600 locais mapeados onde se pratica agricultura, dos quais 987 são unidades de produção agropecuária da agricultura familiar ou hortas urbanas. Boa parte delas (390) conta com assistência técnica contínua, o que favorece o acesso dos agricultores às políticas públicas de incentivo à agroecologia, agricultura familiar e agricultura urbana. Um dos pontos altos da trajetória paulistana de construção de políticas públicas de agroecologia foi a aprovação da Lei da Alimentação Escolar Orgânica, que estabeleceu a meta de que, até 2026, 100% da alimentação das unidades escolares da rede municipal deverá ser orgânica ou de base agroecológica. No entanto, perto de completar 10 anos, a estimativa da oferta de alimentos orgânicos para as escolas no último ano foi de apenas 3,3%.

A lei paulistana está entre as mais de 700 iniciativas municipais que apoiam a agroecologia identificadas no levantamento Municípios Agroecológicos e Políticas de Futuro, realizado pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e cadastradas na plataforma Agroecologia em Rede. Neste ano, essas iniciativas serviram de referência para a elaboração da Carta Política Agroecologia das Eleições 2024, um documento que reúne 51 propostas de políticas públicas relacionadas ao apoio à agricultura familiar e à agroecologia, à promoção da segurança alimentar e nutricional e ao fortalecimento das cidades diante da emergência climática.

A lei, que determina que todo estudante da rede de ensino do município de São Paulo tem o direito de receber alimento agroecológico, foi aprovada na Câmara Municipal em 2015, após a mobilização de organizações da sociedade civil e movimentos sociais.

“Do ponto de vista de sistemas alimentares, a aprovação dessa lei foi uma das maiores conquistas do município, porque sabemos do potencial  do programa de alimentação escolar para transformar sistemas alimentares”, explica Giorgia Russo, presidente da Comissão Gestora da Lei de Orgânicos na Alimentação Escolar de São Paulo e especialista em Saúde Pública pelo Instituto de Defesa de Consumidores (Idec).

“O recurso para o alimento saudável, conforme a lei prevê, é um recurso para educar, não é só para encher a barriga do estudante. E se ele está ali para educar, precisa ser um alimento extremamente adequado. Quando trazemos um alimento da agroecologia, ensinamos qual a sua importância para um sistema alimentar saudável e sustentável, e o estudante vai aprender em sala de aula a fazer escolhas conscientes, com senso crítico, que é o grande objetivo da educação alimentar e nutricional”, diz Russo.

Em 2018, o percentual de aquisição de orgânicos estava perto de 5%. Segundo o plano de ação previsto no Decreto Nº 56.913/2016, que regulamenta a Lei, para atingir a meta de 100% em 2026, este percentual deveria ser de, no mínimo, 50% em 2023 e 60% em 2024.

Ocorre que as únicas informações sobre o assunto apresentadas pela Prefeitura são referentes a 2023, e, até julho do ano passado, apenas 1,2% da alimentação escolar tinha sido orgânica. “O que tem acontecido é que, desde a pandemia, a gente está vivendo um retrocesso. Algumas escolas recebem, outras não, e essa meta está bem longe de ser atingida”, conta Russo.

Segundo Susana Prizendt, integrante do MUDA-SP (Movimento Urbano de Agroecologia), um dos fatores que explica a atual baixa oferta de orgânicos na alimentação escolar é a falta de obrigatoriedade de aquisição desses alimentos nas escolas conveniadas ou terceirizadas. Em 2017, na gestão Dória, a Prefeitura passou a enviar dinheiro ao invés de alimentos para as unidades conveniadas que administram os Centros de Educação Infantil (CEI). E, desde 2021, houve uma aceleração na terceirização e, consequentemente, na compra de alimentos feita pelas terceirizadas. “O processo de terceirização da alimentação escolar em São Paulo é muito forte e as creches conveniadas ou escolas terceirizadas não têm nenhum mecanismo para que a gente possa fiscalizar e controlar a compra de alimentos orgânicos. E como elas planejam lucro, se o alimento ficar mais caro, é muito difícil aceitarem essa compra”, explica Prizendt.

Clara Camargo, integrante da Articulação Paulista de Agroecologia (APA), avalia que a Lei da Alimentação Escolar Orgânica foi a culminância do esforço de transformar a agroecologia em política no município de São Paulo, fazendo uma comida de qualidade chegar à boca das pessoas. “Mas é isso, agora não está chegando”, lamenta.

Políticas públicas de agroecologia na capital paulista

A trajetória das políticas públicas de agroecologia em São Paulo começou nos anos 2000. Em 2004, foi criado o Programa de Agricultura Urbana, durante o governo de Marta Suplicy. Nove anos depois, em 2013, o Programa ganhou impulso devido à participação de várias ONGs, cooperativas e associações de agricultores urbanos e rurais no debate de propostas, na sistematização das demandas e na articulação com o Legislativo e o Executivo para a inclusão dessas pautas nos planos de governo.

Atualmente, as políticas públicas agroecológicas na cidade de São Paulo se concentram no Programa Sampa+Rural, com orçamento de R$ 7 milhões para toda a agricultura. Segundo dados da Prefeitura Municipal de São Paulo, há um conjunto de iniciativas, como os programas Operação Trabalho, Acelerando Hortas e Patrulha Agrícola, que chegam a impactar, diretamente, em torno de 1000 agricultores,

De acordo com André Biazoti, que também integra a Articulação Paulista de Agroecologia (APA) e a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), a cidade de São Paulo tem hoje uma política de agricultura urbana que atende muitas frentes, formada por vários programas que apoiam os agricultores em diferentes escalas. “Essa vontade de estruturar a cadeia da agricultura na cidade é uma das principais conquistas da sociedade”, diz Biazoti.

Ao olhar especificamente para a Lei da Alimentação Escolar Orgânica no município, percebe-se como essa política pública pode, por um lado, garantir alimentação saudável a mais de 1 milhão de estudantes e, por outro lado, gerar renda para a agricultura familiar, apoiar práticas sustentáveis de produção de alimentos e fomentar a economia local.

A ampliação das hortas escolares é outro resultado potencial da Lei. Conforme explica Prizendt, sempre que possível, as hortas escolares devem incluir as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), pois elas podem enriquecer o cardápio escolar, além de ter caráter pedagógico. “Com as hortas, é possível demonstrar a importância dessa alimentação mais biodiversa e aumentar sua aceitação pelas crianças”, explica Prizendt.

Deve-se ressaltar, ainda, que seguindo orientações previstas na legislação federal do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), e reforçadas por normativa municipal da Lei da Alimentação Escolar Orgânica, o município pode pagar até 30% a mais na compra de produtos orgânicos certificados ou produzidos no município em propriedades em transição agroecológica.

Desafios

A implementação de uma Lei como a da Alimentação Escolar Orgânica num município grande como São Paulo traz muitos desafios: “a cidade tem 3750 unidades educacionais e mais de um milhão de alunos matriculados, ou seja, são mais de 2 milhões de refeições por dia, então é uma logística gigante”, diz Camargo.

Biazoti destaca que este debate sobre as políticas públicas de agroecologia deve ser feito no atual contexto das eleições municipais de 2024. Para ele, as candidatas e candidatos precisam assumir o compromisso de garantir a continuidade de programas, ampliar o orçamento para a agricultura, avançar na regularização fundiária e criar uma política de abertura de novos mercados para a agricultura urbana.

Em relação à Lei da Alimentação Escolar Orgânica, Biazoti reforça a importância de retomar o plano de ação. “A gente teve um avanço importante na valorização de alimentos orgânicos na alimentação escolar de São Paulo, e esse avanço parou. Existe um plano progressivo e precisamos conseguir, minimamente, 30% de orgânicos na alimentação escolar na próxima gestão”, reivindica.

Em sua opinião, também é preciso abrir caminho para a implementação de novas hortas. “Não existe hoje no município uma política muito estruturada para apoiar, por exemplo, um cidadão que vislumbra um terreno ocioso e quer fazer uma horta, participando de algum programa público”, explica Biazoti.

Segundo Camargo, isso ocorre porque há interesses de mercado muito fortes e uma especulação imobiliária gigante em São Paulo. “Até mesmo as hortas que existem podem deixar de existir a qualquer momento”, diz ela. Para exemplificar, Camargo conta que, recentemente, a Horta das Flores teve que conquistar judicialmente, por meio de uma liminar, o direito de permanecer no Parque da Mooca. “O terreno vale muito em São Paulo, por isso são necessárias políticas públicas que protejam essas áreas”, ela conclui.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo