Opinião

Os bodes expiatórios do flagelo das bets

Demonizar ou tutelar os beneficiários do Bolsa Família não resolve o problema

Os bodes expiatórios do flagelo das bets
Os bodes expiatórios do flagelo das bets
Cartão do programa Bolsa Família. Foto: Roberta Aline/MDS
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A memória me trai. Não me lembro se a esquete passou no Viva o Gordo, n’Os Trapalhões ou na TV Pirata. Um maltrapilho pede dinheiro a uma madame para comprar cachaça. Ela recusa e diz: não me engane, você quer é comprar pão. O esfarrapado insiste: Não, eu juro, vou comprar cachaça. Resoluta, a senhora não se deixar enganar. Vai embora sem dar um centavo e depois de espinafrar o pedinte.

A cena me veio à mente por causa da tentação, à esquerda e à direita, de jogar nos ombros dos beneficiários do Bolsa Família a responsabilidade pelo descontrole das bets. Coitadinhos, são ignorantes, incapazes, não sabem o que fazem, precisam do braço forte e da mão amiga de quem conhece todos os caminhos – e atalhos – para a virtude e a prosperidade.

No caso dos patriotas e liberais à brasileira, trata-se de reciclar o velho preconceito: o Bolsa Família é uma fábrica de vagabundos, sanguessugas, um fardo a quem produz. Se essa turma tivesse alguma convicção sobre qualquer coisa, diria que o ranço em relação ao programa é uma traição aos seus próprios princípios.

Ao querer decidir pelos beneficiários do Bolsa Família, governo e oposição arrumaram um jeito de fugir do problema real

A renda básica, inspiração do Bolsa Família, é uma ideia “libertária”, não “comunista”. É entregar dinheiro na mão do indivíduo para ser gasto de forma a irrigar a economia, à livre escolha do indivíduo. Não importa se ele ou ela prefere cachaça ao pão, se troca o leitinho das crianças por um corte de cetim para uma mulher que só diz sim ou uma camisa amarela para o pedaço que canta a Florisbela e só volta na quarta-feira de cinzas. O efeito sobre o PIB será o mesmo.

No caso dos ditos progressistas, pesa a eterna desconfiança quanto à capacidade de discernimento do povo. Na América Latina, o bom-mocismo leva ao cacoete da tutela, que não raro deságua no caudilhismo, em “escolhidos” para guiar as massas ignaras rumo ao paraíso. A emancipação atrapalha.

Ao querer decidir pelos beneficiários do Bolsa Família, governo e oposição arrumaram um jeito de fugir do problema real. Se quisessem de fato atacar o problema, tomariam as medidas necessárias: proibir a publicidade e patrocínio das casas de apostas, ampliar as operações contra fraudes e lavagem de dinheiro, levar criminosos à cadeia com trânsito em julgado e, por fim, mas não menos importante, banir as apostas on-line. Mas aí alguém vai reclamar do cerceamento à livre iniciativa e às liberdades individuais. Mais fácil é agir como a madame diante do maltrapilho.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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