Política

assine e leia

Velha obsessão

Pela enésima vez, um deputado “liberal” propõe cobrar mensalidade nas universidades paulistas

Velha obsessão
Velha obsessão
Retoque. Após as críticas, o deputado Siqueira modificou alguns pontos do projeto. A essência continua a mesma – Imagem: Cecília Bastos/USP Imagem e Rodrigo Costa/Alesp
Apoie Siga-nos no

As universidades públicas paulistas, USP, Unicamp e Unesp, têm um problema para resolver no futuro próximo: definir qual será a nova fonte prioritária de financiamento depois do fim do cartacapital.com.br/tag/icms, imposto estadual que será substituído gradualmente pelo IBS, conforme definido na reforma tributária. A autonomia financeira garantida a essas instituições desde 1989 depende dos 9,57% repassados por meio do ICMS. Em meio a esse impasse, o deputado estadual ­Leonardo Siqueira, do partido Novo, achou por bem propor a cobrança de mensalidade nas universidades públicas. A ideia é surrada, mas desta vez inclui uma armadilha financeira, a possibilidade de um empréstimo oferecido pelo governo estadual ao aluno sem condições de pagar a taxa, cuja viabilidade esbarra na capacidade de endividamento do estado e nos riscos inerentes a esse tipo de operação.

O Projeto de Lei 672 foi protocolado na Assembleia Legislativa na segunda-feira 16 e causou certo burburinho na comunidade acadêmica. O reitor da Unicamp, Antonio José de Almeida ­Meirelles, garante que a proposta só poderia partir de alguém que não conhece o trabalho das universidades, pois a cobrança de mensalidades jamais seria suficiente para suprir as necessidades orçamentárias. “Os orçamentos cobrem uma variedade de custos, aqueles mais associados às atividades de ensino, mas também os associados a estruturas de pesquisa científica sofisticadas e caras e à assistência médico-hospitalar pública prestada por nossos equipamentos de saúde. Esses últimos custos representam parte muito expressiva das nossas despesas, indicando que eventuais taxas pagas pelos que frequentam os nossos locais de ensino cobririam parte muito pequena ou teriam de ser imensamente altas.”

A proposta do deputado Siqueira é criar o Programa Siga, Sistema de Investimento Gradual Acadêmico, para estabelecer a cobrança de mensalidades, cujos valores seriam estabelecidos pelas próprias instituições. Quem não pode pagar não precisa se preocupar, pois o parlamentar pensou em tudo. “O apoio financeiro do programa consiste de um programa de financiamento educacional estadual, em que os empréstimos contratados serão amortizados em prestações definidas de acordo com a renda futura do contratante, a partir da data de conclusão do curso e ingresso no mercado de trabalho.” O empréstimo teria uma sobretaxa de 25% sobre o valor inicial, e ao longo do curso o financiamento seria corrigido pelo IPCA, índice “oficial” da inflação.

O projeto de Leonardo Siqueira, do Novo, não inclui nenhuma estimativa de quanto seria arrecadado

Para o presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior, Gustavo Seferian, professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, trata-se de uma tentativa de romper com um dos alicerces da universidade pública. “Já vimos que essa história de pagar lá na frente não é uma perspectiva das melhores, pois o sujeito se forma com ­suas perspectivas de futuro agrilhoadas, o que é muito perverso.” Não é possível estabelecer, insiste Seferian, que os recursos da universidade pública estejam atrelados a uma “lógica de mercado”.

Ao justificar a cobrança, o autor do projeto baseia-se em países como Estados Unidos, Austrália, Inglaterra e Chile. A ideia é errada, alerta o reitor da Unicamp, pelo fato de não existir um modelo-padrão. Cada país desenvolveu um sistema de acordo com sua realidade e necessidade locais. Nos EUA, há uma imensa variedade de opções, desde as faculdades de ponta com mensalidades estratosféricas a instituições municipais e estaduais subsidiadas pelo Poder Público, nas quais, ­aliás, estuda a maioria dos jovens. O Brasil, por sua vez, decidiu que o ensino público seria gratuito e inscreveu tal decisão na Constituição de 1988. O Projeto de Lei, portanto, seria inconstitucional. “A decisão da Constituinte não só reflete a nossa tradição em relação ao ensino público no País, como também responde aos desafios que o desenvolvimento econômico requer da formação de pessoas e da geração de conhecimento em ciência e tecnologia, feitas principalmente nas universidades públicas”, argumenta Meirelles.

O deputado esqueceu de citar que todos os países usados como inspiração investem mais que o Brasil em educação. De acordo com o mais recente relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, o clube das nações mais ricas, ocupamos o antepenúltimo lugar em uma lista de 42 sistemas analisados. Aplicamos cerca de 3 mil dólares por aluno, ante a média de 10 mil na OCDE.

Subfinanciamento. Os protestos e as greves são consequência do baixo investimento em educação no País, em todos os níveis – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil

A professora Michele Schultz, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, vê com muita preocupação a proposta por ser “claramente uma tentativa de restringir a presença de estudantes pobres na universidade pública”. Em 2019, ao entrar na sala de aula, Schultz recorda ter notado uma diferença abissal em relação a anos anteriores. “A turma era praticamente meio a meio, metade de brancos e metade de negros, foi fantástico. Se pensarmos que se trata de uma universidade projetada para a elite branca do estado de São Paulo, quando você começa a mudar esse perfil, incomoda.” Segundo a docente, atualmente coordenadora do Fórum das Seis, a agremiação das entidades sindicais e estudantis da Unesp, Unicamp, USP e Centro Paula Souza, a entrada de alunos de estratos sociais mais vulneráveis trouxe novas demandas, mas proporcionou uma contribuição social e cultural muito rica e impôs aos professores desafios que contribuem para o avanço e a melhora da qualidade dessas instituições. A cobrança de taxas e o consequente afastamento desses estudantes colocaria tudo a perder. “No cotidiano em sala de aula, a gente percebe que muitos desses alunos já chegaram preparados, digamos assim, para disputar outro projeto de sociedade. E isso faz uma diferença imensa. Mas há setores na própria universidade que resistem a essa mudança, e fora dela mais ainda. Então, vez ou outra, aparecem esses projetos de afronta ao conceito da universidade pública.”

Schultz e Seferian garantem que a proposta gerou amplo debate no ambiente acadêmico e mobilizações estão previstas para os próximos dias. Enquanto isso, na Assembleia, parlamentares do campo progressista correm para evitar o avanço do projeto. A deputada Ediane Maria, do PSOL, protocolou uma emenda que proíbe a cobrança de mensalidade nas instituições públicas de ensino superior do estado. Luiz Cláudio Marcolino, do PT, protocolou um substitutivo para inverter a lógica do Programa Siga, e transformá-lo em um instrumento de apoio financeiro do governo estadual aos estudantes de baixa renda do ensino superior público. A proposta do deputado é oferecer um benefício social durante toda a duração do curso no valor de um salário mínimo paulista.

Reitores, professores e deputados estaduais mobilizam-se para barrar o projeto

A proposta do substitutivo, defende Marcolino, busca ampliar o debate público sobre o tema. “Esse projeto apresentado pelo deputado do Novo não é apenas uma tentativa de desvirtuar o modelo público de educação, mas uma disputa de concepção de universidade pública socialmente referenciada.” Ao propor algo totalmente diferente da ideia inicial, o parlamentar pretende forçar a discussão sobre políticas de permanência estudantil no âmbito legislativo. “Minha proposta, com o substitutivo, tem como objetivo fomentar a educação, reduzir as desigualdades sociais e garantir a permanência do aluno no curso. Em vez de cobrar, o governo passa a conceder um benefício social.” Além disso, Marcolino defende que o orçamento das universidades seja garantido a partir do orçamento estadual. “A questão da autonomia foi resolvida para o próximo ano na Lei de Diretrizes Orçamentárias, porque ainda está vinculada ao ICMS. Mas vamos precisar pensar em uma nova fonte de financiamento para o futuro, e defendo que seja um porcentual garantido do Tesouro Estadual, como acontece para outras instâncias, como o Tribunal de Justiça ou a Defensoria Pública, por exemplo.”

A proposta coincide com opiniões do Conselho dos Reitores das Universidades Estaduais Paulistas, que sugere inscrever a vinculação na Constituição Estadual. Dessa maneira, as três instituições passariam a receber o equivalente a 8,63% da receita tributária líquida do estado, o correspondente, em valores atuais, a cerca de 15 bilhões de reais.

Alertas. Meirelles, da Unicamp, e Schultz, do Fórum dos Seis, criticam o projeto de lei – Imagem: Redes sociais e Antonio Scarpinetti/Unicamp

Após o registro de manifestações contrárias à proposta inicial, o autor do projeto protocolou uma emenda, na manhã da quarta-feira 25, para aparentemente tentar desfazer a ideia de que o projeto iria afastar os estudantes das classes mais vulneráveis. De acordo com o projeto reformulado às pressas, o programa seria aplicado apenas a quem tenha “renda do trabalho superior a 20 salários mínimos paulistas”. Propõe ainda a criação de um fundo destinado ao apoio à permanência estudantil e formação para “alunos provenientes de famílias de baixa renda”. Trata-se do Fundo Futuro Paulista, a ser dividido da seguinte forma: 75% dos valores arrecadados serão destinados ao Fundo de Ascensão Social pela Educação (destinado à permanência) e 25% à infraestrutura das instituições. Em nenhum momento o parlamentar apresenta, no entanto, uma projeção de quanto seria possível arrecadar com a cobrança de mensalidades, e quanto a modalidade supriria o orçamento total das universidades. Siqueira não atendeu aos pedidos de entrevista desta revista.

O deputado Carlos Giannazi, do PSOL, garantiu que o projeto não tem chance de avançar para votação em plenário, por se tratar de uma proposta que precisa de aprovação do Colégio de Líderes. No que depender do PSOL, sustenta, a proposta não será aprovada. •

Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Velha obsessão’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo