Cultura
O terror abrigado em um corpo
Por que A Substância tem sido definido como um filme autêntico e corajoso sobre o envelhecimento feminino


O corpo feminino é um filme de terror esperando para acontecer. Da puberdade e o início terrível da menstruação, em filmes como Carrie, a Estranha (1976), de Brian De Palma, e Possuída (2000), de John Fawcett, à gravidez e ao parto, que tem como símbolo óbvio O Bebê de Rosemary (1968), as mulheres têm sido uma rica fonte de inspiração para cineastas do gênero ao longo do último meio século.
No entanto, quando se olha um pouco mais de perto para essa tendência, duas coisas ficam claras: a grande maioria do terror baseado no corpo feminino lida com aspectos do sistema reprodutivo e tem, como diretores, homens – Titane (2021), de Julia Ducournau, e A Primeira Profecia (2024), de Arkasha Stevenson, filmes recentes que usam a gravidez para aterrorizar, são exceções notáveis.
Esse contexto contribui para que o segundo longa-metragem visceralmente revoltante da diretora francesa Coralie Fargeat seja tão revigorante. A Substância, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 19, não só oferece uma perspectiva feminina sobre os corpos das mulheres como também mostra que as coisas podem ficar especialmente confusas a partir do momento em que a fertilidade se torna uma memória distante.
Claro que não faltam filmes de terror que usam o corpo feminino mais velho para chocar. Eles são, inclusive, um elemento-chave do subgênero “exploração das bruxas” – pense em Mia Goth coberta de próteses de carne flácida em X: A Marca da Morte (2024), de Ti West.
Mas o ponto de partida para A Substância é menos o corpo em si e mais uma reação à ideia dele. A história é desencadeada pela mudança violenta de atitudes quando uma mulher faz 50 anos e atinge o que a sociedade considera ser sua obsolescência programada.
A abordagem é alegremente excessiva, com a evocação de imagens ultrajantes e monstruosas que, depois, são recobertas com ainda mais sangue. O filme faz o segmento dirigido por Fruit Chan para a trilogia asiática Três… Extremos (2004) parecer um modelo de contenção e bom gosto – a despeito do menu de dim sum recheado de feto humano para se buscar beleza e rejuvenescimento.
A Substância nos mergulha na carnificina emocional perturbada e desorientadora da menopausa de uma forma que poucos outros filmes conseguiram. No papel central de Elisabeth Sparkle, uma estrela de cinema que virou instrutora fitness na tevê, Demi Moore entrega a atuação mais destemida de sua carreira.
Tendo passado toda a vida adulta na frente das câmeras, Elisabeth está bem ciente de que a indústria pode perdoar muitas coisas, mas não o envelhecimento. Ela comemora o aniversário de 50 anos em um almoço com o chefe, o impetuoso executivo de tevê Harvey (Dennis Quaid). Ele devora um prato de camarões – o som é nojento durante todo o filme, mas o barulho dos crustáceos esmagados é particularmente estremecedor – enquanto informa à ex-atriz que vai rescindir seu contrato.
Deprimida, sem nada a esperar além do deserto infinito da irrelevância, Elisabeth é uma cliente ideal para a substância, uma droga de reprodução celular vendida no mercado paralelo que promete um novo você. Trata-se de uma versão nova em folha, sem rugas, sintetizada a partir do seu material genético e “nascida” da maneira mais horrível que se possa imaginar.
A replicante de Elisabeth é Sue (Margaret Qualley), espécime fisicamente perfeito destinado ao estrelato instantâneo após assumir o collant metálico e o papel central no programa de ginástica do qual Elisabeth tinha sido recém-destituída.
A diretora Coralie Fargeat afasta-se do horror ligado à gravidez para mergulhar na perturbação emocional da menopausa
Mas há limitações nessa coexistência desconfortável: a nova versão e a original têm um delicado equilíbrio simbiótico a ser mantido. Elas devem trocar de lugar a cada sete dias, e a nova encarnação precisa ser estabilizada diariamente. É um pacto faustiano macabro – meio Dorian Gray, meio Gremlins.
O tema da modificação corporal futurista fascina Coralie. Seu curta-metragem Reality+ (2014) mostrava um chip cerebral que, uma vez implantado, conferia ao receptor a noção de ter o físico perfeito. Depois disso, no longa-metragem Vingança (2017), ela explorou a fúria do movimento #MeToo e deu o tom para o equilíbrio precário entre feminismo e exploração que caracteriza seu último filme.
Confesso que eu tinha algumas reservas sobre a objetificação da personagem feminina central em Vingança. Com base nas evidências daquele filme e de A Substância, Coralie poderia ser classificada, ao lado de Abdellatif Kechiche, diretor de Azul É a Cor Mais Quente (2013) como um dos cineastas atuais mais obcecados por bundas.
Mas, neste caso, a maneira como a câmera adora o altar de nádegas imaculadamente tonificadas, e de pele brilhante e cheia de elasticidade, funciona perfeitamente. Elisabeth foi treinada para ver o mundo pelas lentes da indústria do entretenimento, que ampliam até a menor imperfeição e equiparam juventude a valor.
Talvez nem precise ser dito, mas este não é um filme no qual se deva buscar realismo e lógica internos. Coralie Fargeat ignora, por exemplo, a questão de se há uma consciência compartilhada entre as duas mulheres.
“Lembre-se de que você é uma”, adverte o manual de instruções do cartão de memória que acompanha os frascos da substância. Inevitavelmente, no entanto, Elisabeth e Sue se veem em guerra pelo equilíbrio de seus recursos comuns, cada vez menores. É uma batalha que não pode terminar bem para nenhuma delas. Mas não é essa, afinal, a maldição de qualquer mulher aos olhos do público? A única competição que ela está sempre destinada a perder é com o seu eu mais jovem. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O terror abrigado em um corpo’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.