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Segurança alimentar

É preciso acabar com os anos da fome em um país de abundância

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Foto: Roberta Aline/MDS
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Ao escrever Geografia da Fome e Geopolítica da Fome, Josué de Castro deu nome para aquilo que o povo brasileiro – e vários outros no mundo – experimentava (e ainda experimenta) ao ter o direito violado à alimentação adequada. Temos 80 anos de fome conceituada no Brasil. E ao menos 524 anos de privação do direito à terra e ao alimento, desde que se iniciaram os processos de dominação europeia sobre os povos originários.

Faz 20 anos que a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, a Ebia, começou a ser aplicada em inquéritos populacionais no Brasil. A ferramenta metodológica dá a dimensão dos níveis de insegurança alimentar vividos nos territórios brasileiros. O modo mais severo, a insegurança alimentar grave, corresponde à fome. Com o exílio de Josué de Castro durante a ditadura, passamos 25 anos a usar termos como desnutrição, má nutrição, subnutrição. O fenômeno era reduzido ao corpo biológico. Não conseguíamos situar esse corpo biológico no mundo social. Só no fim dos anos 1980, sobretudo com o trabalho de ­Herbert José de Souza, o Betinho, voltamos a pronunciar a palavra “fome”.

Aprendemos com a Ebia, aplicada em pesquisas domiciliares pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, juntamente à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2004, 2009 e 2013, e à Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2017/2018. Em 2014, as políticas sociais e econômicas dos governos do Partido dos Trabalhadores levaram o Brasil a sair do Mapa da Fome. Em 2019, durante o governo Bolsonaro, a Ebia deixou de ser aplicada. O Censo, que deveria ser realizado em 2020, foi adiado, no cenário de negacionismo dominante. Em paralelo, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, órgão colegiado que assessora a Presidência da República nas políticas públicas referentes ao direito humano à alimentação, foi extinto.

A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), nascida em 2012, precisou entrar em cena. É uma ­entidade de pesquisa cidadã pensada, e tornada possível, pela experiência de representação política construída pelo Consea. Com o fechamento do Conselho, fortalecer a Rede tornou-se um imperativo. Os impactos econômicos e sociais vividos durante a pandemia nos exigiram a produção de dados e informações sobre a fome.

Realizamos duas edições do Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da ­Covid-19 ­(Vigisan) com o apoio da Ação da Cidadania, da ­ActionAid, da Ford Foundation, da Fundação Friedrich Ebert Brasil, do Ibirapitanga, da Oxfam ­Brasil e do Sesc São Paulo. Em 2020, revelamos que 19 milhões de brasileiros passavam fome. Na segunda edição da pesquisa (2021/2022), eram 33,1 milhões que não tinham o que comer. Estava exposto o descumprimento de múltiplos direitos sociais a partir da violação do direito humano à alimentação.

Alcançamos repercussão na imprensa mundial e nos debates presidenciais de 2022. No Congresso, nas Câmaras Legislativas, nas universidades, nas filas dos supermercados, nas conversas em família. E essa metodologia tem orientado a pauta do governo que tomou posse em 2023. A Ebia voltou a ser aplicada pelo IBGE. Retomamos o acesso a informações sobre a insegurança alimentar nos domicílios gerada pelo governo federal. O Consea retomou suas atividades no primeiro mês de exercício do atual governo. Os resultados da pesquisa de 2023 revelaram que mais de 24 milhões de brasileiros saíram da situação de fome. Uma sensação de alívio.

A Rede Penssan tem se dedicado cada vez mais aos efeitos das mudanças climáticas

Precisamos aprender a mudar a situação de forma consistente para assegurar o direito à alimentação, para a segurança alimentar e nutricional com soberania alimentar, independentemente do governo de plantão.

E qual é o papel da Rede Penssan no atual cenário? Reunimos pesquisadoras e pesquisadores de todas as regiões do País com trabalhos no campo da soberania e da segurança alimentar e nutricional. Queremos seguir expandindo a pesquisa em temas e territórios. A Rede Penssan tem voltado o seu olhar para os sistemas alimentares e a mudança climática, com especial atenção para as populações vulnerabilizadas deste imenso país, que nem sempre estão em domicílios. De 10 a 13 de setembro, realizamos o 6º Encontro Nacional de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, no Rio de Janeiro. Recebemos mais de 600 participantes de todas as regiões, a maior edição já realizada. Discutimos o problema do acesso ao alimento de qualidade, nada além do que está na Constituição, no artigo 6, e na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional.

Estamos construindo caminhos para uma pesquisa inédita e necessária direcionada para os povos indígenas do Brasil. Estamos negociando apoio para estar em campo nos territórios amazônicos, e vamos continuar na luta para ter mais financiamento. Temos uma pesquisa em andamento sobre a fome da população negra em periferias da cidade de São Paulo, e queremos construir uma investigação específica dedicada à população LGBTQIAPN+. Agendas, para o nosso campo, não faltam.

Em julho deste ano, realizamos o 1º Encontro da Amazônia Legal de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Criamos pontes significativas com quem faz pesquisa na Região Norte. Estamos discutindo metodologias para validar uma escala internacional de insegurança hídrica, aplicável no Brasil, a partir, principalmente, dos dados do 2º Vigisan e de uma investigação na Bacia do Médio Amazonas, que, paradoxalmente, abriga precariedade de acesso a água e a alimentos, mesmo sendo a maior bacia de água doce do planeta.

O princípio da Rede Penssan é a pesquisa cidadã, que se faz com, para e junto a todos os cidadãos brasileiros. Fazemos ciência para o ser humano, que vive em um bioma, que tem história, que tem tradição, que tem gosto. Produzir conhecimento, no contexto que for, é contribuir para uma sociedade mais igualitária, mais solidária, mais justa e livre da fome. Que possamos acabar com os anos da fome em um país de abundâncias. •


*A autora foi coordenadora da Rede Penssan de setembro de 2022 a setembro de 2024. Integra a atual chapa de coordenação da entidade. É professora e pesquisadora nutricionista, doutora em Administração Pública e professora da Universidade Federal da Bahia.

Publicado na edição n° 1330 de CartaCapital, em 02 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Segurança alimentar’

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