SaúdeCapital
Um outro olhar sobre a saúde pública e a medicina, em parceria com a Casa Caeté.
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Descansa, militante: reflexões sobre saúde mental e a atividade de militância
Uma abordagem ‘tarefista’ e ‘movimentista’ pode afastar da perspectiva de transformação social reproduzindo a lógica alienante de sentidos da vida — e não seu papel humanizador


Parece que sempre é tempo de crise e desigualdade. E a saúde mental, que recentemente ganhou um pouco mais de atenção, agora é tema central nos debates: 5,7% dos brasileiros sofrem de depressão, o maior índice da América Latina. Organizar-se coletivamente para romper com essa realidade não é fácil. Envolve decisões de assumir certos riscos e desafios, o que pode trazer muitas angústias (e, é claro, eventualmente algumas alegrias). Diante disso, é necessária a pergunta: a atividade de militância tem adoecido quem se organiza politicamente?
Primeiro, um debate sobre saúde e suas diversas conceituações: de maneira geral, podemos dizer que seres vivos estão saudáveis quando estão em condições de realizar aquilo que a natureza lhes apresenta como potencial de realização. Um exemplo: plantas são saudáveis quando conseguem absorver nutrientes da terra, desenvolver sua estrutura, produzir carboidrato e oxigênio através da fotossíntese, produzir flores, frutos, sementes ou quaisquer outras formas de reprodução. Quando falamos de animais: obter alimento, proteger-se, reproduzir a espécie e viver a expectativa de vida da sua espécie. Mas, quando falamos sobre nós, seres humanos, nossas possibilidades não estão determinadas por nossa dimensão biológica. Se assim fosse, não conseguiríamos passar horas embaixo d’água ou mesmo viajar para o espaço.
Dessa forma, a saúde para o gênero humano não tem sua compressão apenas da dimensão do indivíduo, seja ela biológica ou psicológica, mas também da sociedade, sua forma de organização e do nível de avanço tecnológico. Assim, a saúde pode ser entendida como o máximo de desenvolvimento das potencialidades do homem, de acordo com o grau de avanço obtido pela sociedade em um período histórico determinado.
Martín-Baró, militante da esquerda de El Salvador e psicólogo define: “a base da saúde mental de um povo encontra-se na existência de relações humanizadoras” ou desumanizadoras — no caso de nossa sociedade capitalista. Em outras palavras, a forma como as pessoas trabalham e se organizam para produzir a vida é a base sobre a qual desenvolvemos nossas funções psíquicas, sofremos desgastes e alienação ou produzimos relações humanizadoras e produtoras de sentido.
Percebe-se que nossa vida social apresenta um duplo caráter: ao mesmo tempo em que conseguimos, enquanto gênero humano, alcançar um incrível conhecimento do corpo humano em sua dimensão biológica e psicológica — o que possibilitou um aumento da expectativa de vida próxima a cem anos —, este mesmo aumento da expectativa não é possível para todas as pessoas, apesar de todos pertencermos à mesma espécie e sociedade. A posição que a pessoa ocupa na sociedade gera um padrão de desgaste diferente, pessoas que vivem da venda da sua força de trabalho para reproduzir sua vida se submetem às condições colocadas pela classe detentora dos meios para o trabalho, o que promove essa diferença no padrão de desgaste e desumanização.
A alienação vivida pelos trabalhadores tem um papel central no processo de desgaste e sofrimento. A sensação de não se relacionar com o que se produz, a falta de autonomia no trabalho, a perda da identidade e a competição ferrenha com os colegas cria um ambiente adoecedor. Ao ser destituído do controle sobre seu trabalho e sua vida, o indivíduo se sente impotente e desvalorizado, o que leva a uma sensação de vazio existencial e a dificuldades para estabelecer relações sociais saudáveis. A alienação é uma experiência humana que afeta profundamente a saúde mental.
Dentro dessa dinâmica de intenso desgaste que nós, trabalhadores, já estamos expostos, alguns ainda adicionam a essa dinâmica mais uma atividade: a militância. No seu tempo fora do trabalho, quando poderiam escolher uma forma mais “agradável” para passar o tempo, os militantes optam por incluir uma atividade que tem, como característica, questionar a exploração no trabalho, lutar contra racismo, o patriarcado, a LGBTfobia e outras tantas formas de opressão. Dedicam seu tempo para estudo, atos, trabalhos de formação e conscientização de outros trabalhadores. O tempo que teriam para ficar com seus familiares, descansar ou simplesmente viver o ócio é preenchido com a militância.
Para conseguir realizar essas atividades, militantes geram, em suas vidas, mais uma jornada para além do trabalho, cuidar da casa e dos filhos (principalmente mulheres). Viver um período prolongado com mais responsabilidades e menos horas de descanso pode gerar mais desgaste do que reprodução da vida. E, às vezes, uma abordagem “tarefista” e “movimentista” pode afastar da perspectiva de transformação social reproduzindo a lógica alienante de sentidos da vida — e não seu papel humanizador de construção de sentidos, podendo levar ao esgotamento emocional.
No entanto, a atividade de militância pode não ser mais um “trabalho”, dependendo de como se constrói. Por ter um caráter de atuação coletiva, possui uma possibilidade de romper com um pensamento individualista e uma posição que leva cada vez mais à segregação das pessoas. E, através dessa atividade coletiva, o reconhecimento de suas próprias necessidades não apenas como suas, mas de um coletivo. A sensação de pertencimento, de lutar por uma causa maior e de contribuir para a transformação social pode cumprir um papel humanizador. Um exemplo desse potencial da atividade de militância foi a pesquisa do atual candidato à prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos. Em sua dissertação de mestrado “Estudo sobre a variação de sintomas depressivos relacionada à participação coletiva em ocupações de sem-teto em São Paulo”, ele notou que a atividade coletiva nas ocupações geraram índices menores de depressão nos jovens do movimento.
No entanto, é importante destacar que, apesar do seu possível efeito “terapêutico”, isso não significa que a militância também possa ser terapia. Se ela eventualmente toma esse sentido é justamente por que as relações humanas, na nossa sociedade atual, tem caráter gerador de sofrimento e coisificação das pessoas.
A forma como partidos políticos e movimentos sociais se organizam pode criar tendências que, por um lado, podem conservar as relações individualistas; ou, por outro, desenvolver relações humanizadoras. O militante revolucionário Antonio Gramsci traz alguns elementos de organização de partido político que orientam formas de criar uma atividade coletiva produtora de sentido.
Segundo Gramsci, desenvolver uma práxis educadora (atividade educadora que se organiza na dimensão da teoria enquanto guia da atuação prática e que, por sua vez, também orienta a direção do estudo) dentro do partido é fundamental para requalificar a compreensão dos militantes da realidade capitalista, assim como de suas próprias relações intra e extrapartidárias. Ao mesmo tempo que promove a educação política interna, também desenvolve a democracia coletiva. Assim, a atividade tende a perder, dentro das possibilidades do sistema capitalista, suas características alienantes.
Outra característica é a relação dialética entre democracia interna e atuação unificada dentro do coletivo. É muito importante que haja o momento de democracia em que as diferentes posições podem e devem se confrontar e esgotar toda a discussão ouvindo todas e todos para que, posteriormente, exista o momento de atuação unificada e coletiva. Uma vez que o coletivo decidiu a forma de atuar na realidade, todos, inclusive as posições vencidas no momento anterior, vão se juntar para terem, assim, maior impacto na transformação da realidade.
Por fim, o principal responsável pela geração de sofrimento dos militantes não é diferente das pessoas não-militantes, tem suas raízes na forma de organização da nossa sociedade capitalista. A militância como uma atividade que acontece dentro do capitalismo pode tanto gerar mais desgaste em alguns momentos, como assumir características humanizadas de reprodução da vida e de sentido e, a forma como os partidos e movimentos sociais se organizam pode criar condições que facilitam uma atividade de militância que é reprodutora da vida — ou o oposto.
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