Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

Enquanto o agronegócio for o dono da caneta, queimaremos e sufocaremos

O combate à crise climática no Brasil exige não apenas a proteção da natureza, mas uma reestruturação profunda de nossas políticas sociais e ambientais

Enquanto o agronegócio for o dono da caneta, queimaremos e sufocaremos
Enquanto o agronegócio for o dono da caneta, queimaremos e sufocaremos
Brasília (DF), 27/08/2024 - Pelo terceiro dia, Brasília permanece encoberta por fumaça causada por incêndios florestais. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

A emergência climática que vivemos não é apenas um colapso ambiental: é um sintoma de um sistema opressor que, historicamente, relega os povos tradicionais à margem e ignora a intersecção de raça e gênero. A Amazônia, onde essa crise é mais visível, é palco de lutas diárias pela preservação e sobrevivência. As vozes das comunidades indígenas e quilombolas, os verdadeiros guardiões da terra, continuam a ser sufocadas em nome do lucro.

Durante a Semana do Clima, ficou evidente que a crise ambiental transcende fronteiras e que as soluções não podem ser meramente nacionais. O Brasil, com sua biodiversidade incomparável e detentor de quase 60% da Amazônia, ocupa uma posição central no debate climático global. A COP 30, que será sediada aqui, é uma oportunidade histórica para o país mostrar que, após anos de retrocesso, estamos prontos para liderar a luta pela preservação ambiental.

No entanto, não podemos ignorar o fato de que, com os olhares do mundo voltados para nós, internamente promovemos políticas que favorecem o agronegócio e a destruição das terras que pertencem àqueles que mais as preservam: as comunidades tradicionais. A implementação dos compromissos internacionais, como o Acordo de Paris e a Convenção sobre Diversidade Biológica, parece ser tratada como mera formalidade para alguns, enquanto o desmatamento avança a passos largos.

Ao longo das últimas décadas, o Brasil construiu uma linha do tempo de legislação ambiental que reflete tanto avanços quanto retrocessos. Em 1981, foi promulgada a Lei de Proteção da Vegetação Nativa. Em 1992, o Brasil participou da Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, resultando na criação da Agenda 21. Já em 2012, o novo Código Florestal trouxe mudanças controversas que afrouxaram a proteção ambiental, gerando intensos debates. Hoje, a necessidade de revisar essas legislações torna-se urgente diante da crescente destruição ambiental.

A ascensão de lideranças como Marina Silva e Sônia Guajajara ao governo é simbólica e necessária, mas também reflete os desafios enfrentados por aqueles que lutam para proteger a Amazônia. As forças que se beneficiam da destruição ambiental exercem uma pressão brutal, e ativistas são frequentemente tratados como criminosos. A prisão injusta dos brigadistas de Alter do Chão, por exemplo, expõe como a defesa da floresta pode custar vidas — tanto dos defensores ambientais quanto do próprio planeta. Essa criminalização é uma tática deliberada para enfraquecer o trabalho de ONGs e ativistas, como o Projeto Saúde e Alegria, que atua em prol da preservação e do desenvolvimento sustentável.

Não podemos ignorar que as comunidades quilombolas e indígenas estão na linha de frente dessa batalha. Elas não estão apenas defendendo suas terras, mas um modo de vida que respeita a natureza e a dignidade humana. A luta da comunidade de Conceição das Crioulas, em Pernambuco, contra a grilagem de terras e a destruição ambiental, simboliza essa resistência tenaz.

No cerne da luta por justiça climática está o fato de que a preservação de direitos fundamentais e a proteção de comunidades tradicionais, especialmente os povos quilombolas, é uma das formas mais efetivas de promoção da justiça climática. Este grupo, que historicamente tem sido guardião de saberes ancestrais e de modos de vida sustentáveis, enfrenta um contexto alarmante de violação de direitos e de violência territorial. O que se evidencia, portanto, é a urgência de reconhecer que a preservação de seus territórios não é apenas uma questão de justiça social, mas uma necessidade vital para a mitigação das mudanças climáticas.

Dados do MapBiomas são alarmantes: em 37 anos, o Brasil perdeu 96 milhões de hectares de vegetação nativa, mas as áreas ocupadas por comunidades quilombolas se mostraram resilientes, apresentando apenas 0,05% de desmatamento em 2022. Isso nos leva a questionar quem, de fato, são os responsáveis pela degradação ambiental. As comunidades tradicionais, que menos contribuíram para as mudanças climáticas, são, paradoxalmente, as mais impactadas por seus efeitos. E a desproteção de seus territórios é um dos fatores que alimenta essa tragédia ambiental.

É fundamental que a justiça climática não se restrinja ao uso de tecnologias verdes ou à adoção de uma economia sustentável, sem escutar as vozes das comunidades locais. A então relatora da ONU, Tendayi Achiume, já alertava sobre o perigo de soluções universais que ignoram a desigualdade racial e o racismo ambiental. Precisamos garantir que as políticas climáticas não perpetuem essas injustiças, mas promovam a inclusão e a escuta das vozes quilombolas.

Esses fatores não apenas deslegitimam a proteção aos defensores de direitos humanos, mas também comprometem o próprio ecossistema democrático. O desmonte do sistema de proteção afeta diretamente as comunidades que já enfrentam desafios históricos, transformando a luta por direitos em uma tarefa perigosa e, muitas vezes, fatal. Mulheres negras e indígenas, com sua sabedoria ancestral, estão na linha de frente dessa luta, liderando movimentos de resistência. Como Lélia Gonzalez ensinou, a opressão dessas mulheres está ligada à exploração da terra, e sua luta por um futuro mais justo, muitas vezes, é travada à custa de suas próprias vidas.

Não podemos permitir que o silêncio se instale diante das ameaças que pairam sobre aqueles que se opõem à opressão. Precisamos de políticas efetivas e da proteção dos que lutam, com coragem e determinação, pelos direitos humanos no Brasil. A luta por justiça é uma responsabilidade coletiva, e o momento de agir é agora.

As recentes queimadas que devastaram o Brasil revelam um alarmante padrão de criminalidade ambiental. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), muitas dessas queimadas são intencionais, abrindo espaço para pastagens e agricultura em áreas protegidas. O impacto dessas ações vai além da destruição das florestas, comprometendo a biodiversidade e a saúde das populações locais, que sofrem com a crescente poluição do ar. Em Brasília, por exemplo, o céu, que Djavan descreve como “traço do arquiteto”, nos últimos dias se tornou uma cortina de fumaça. As queimadas, intensificadas nos meses secos, agravam a crise climática e evidenciam o desprezo de setores agropecuários pela preservação ambiental. Isso só ressalta a urgência de uma resposta eficaz do Estado para combater essas práticas criminosas.

A crise climática no Brasil é um reflexo sombrio da desigualdade social, do racismo estrutural e da ganância desenfreada. Nosso comportamento colonialista continua explorando corpos, mentes e saberes, transformando nossas riquezas naturais em mercadoria. Enquanto isso, políticas moldadas pela lógica de capitanias hereditárias tornam a proteção da natureza uma tarefa quase impossível.

Enquanto o agro se expande como pop, nossa casa de leis é usada como pasto a ser explorado. As políticas que deveriam proteger populações e combater a poluição são subjugadas. O Brasil vem sendo rifado, loteado e desmatado, com suas riquezas transformadas em moeda. Nesse cenário, a natureza não prospera, mas seus ecos de resistência se tornam gritos de alerta que clamam por justiça.

Portanto, é imperativo reconhecer que o combate à crise climática no Brasil exige não apenas a proteção da natureza, mas uma reestruturação profunda de nossas políticas sociais e ambientais. A alternância de poder e a inclusão de saberes tradicionais são passos essenciais para que possamos reverter este ciclo de exploração. Enquanto o agronegócio continuar a ser o dono da caneta, queimaremos e sufocaremos, sem capacidade de reação. Que este seja um chamado à ação: é tempo de reintegrar a justiça social na luta pela justiça climática, porque, afinal, um Brasil saudável e justo não é apenas um sonho, mas uma necessidade urgente.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo