Adilson Vieira

É sociólogo e Membro do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Amazônico, da Associação Alternativa Terrazul, da coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e dos Movimentos Sociais para o Meio Ambiente

Renan Andrade

É gestor ambiental, ativista climático e coordenador de campanhas da 350.org

Opinião

Novo Plano de Transição Energética coloca o lobby do gás à frente da crise climática

Insistir no gás fóssil no contexto de uma política de transição energética é tão obsoleto quanto apostar na indústria de CD-ROMs para liderar a inovação tecnológica

Novo Plano de Transição Energética coloca o lobby do gás à frente da crise climática
Novo Plano de Transição Energética coloca o lobby do gás à frente da crise climática
Preços do gás natural às distribuidoras já haviam reduzidos, em média, em 1,5% . Foto: André Valentim/Petrobras
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“Essa festa virou um enterro”. Recentemente, o governo federal protagonizou um episódio que rapidamente se converteu em símbolo de ineficácia política, refletido no chiste que abre este texto, popular nas redes sociais. A cena em questão foi o lançamento da aguardada Política Nacional de Transição Energética (PNTE), agendada para 26 de agosto pelo Ministério de Minas e Energia. O evento, que tinha o potencial de se tornar um marco positivo para as comunidades impactadas pela exploração de combustíveis fósseis e para as organizações que defendem uma transição energética justa, acabou se revelando uma oportunidade desperdiçada. Em vez de impulsionar uma agenda social e ambiental robusta, o governo optou por privilegiar medidas que favorecem a produção e distribuição de gás fóssil — uma escolha que contradiz as expectativas de uma transição justa.

Embora o PNTE tenha sido oficialmente lançado durante o evento, suas diretrizes sobre energias renováveis foram escassas e pouco detalhadas. Os dois principais anúncios — a criação do Fórum Nacional de Transição Energética (Fonte) e o Plano Nacional de Transição Energética (Plante) —, apesar de positivos em teoria, chegam com um atraso considerável. Deveríamos estar tratando dessas questões há anos. Além disso, esses instrumentos são iniciais e não apresentam medidas concretas de impacto imediato. Em contraste, o programa “Gás para Empregar”, dedicado à ampliação da oferta de gás fóssil, foi formalizado com um decreto que entrou em vigor prontamente.

A comunicação oficial do governo destaca a diversificação da oferta de gás, incluindo referências ao fracking, uma técnica altamente controversa e já banida em diversos países por seus impactos socioambientais. Essa priorização das indústrias de petróleo e gás revela a contradição de um governo que, ao se declarar líder climático global em eventos internacionais, opta por políticas internas que perpetuam o uso de combustíveis fósseis, agravando a crise climática.

O contraste entre o discurso do governo e suas ações ficou ainda mais evidente no dia do lançamento do PNTE, quando Brasília amanheceu encoberta pela fumaça das queimadas que assolam boa parte do País. Mesmo que se confirme a suspeita de que houve ação criminosa coordenada para provocar os focos de incêndio, a disseminação do fogo está diretamente associada à crise climática e ao fenômeno El Niño, que intensificam a seca em diversas regiões do Brasil.

Neste cenário de destruição ambiental, enquanto a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios eram envolvidas por fuligem, o governo preferiu ignorar a urgência de uma transição energética real, atuando como se a nuvem de fumaça não fosse apenas literal, mas também simbólica.

Se o governo estivesse disposto a enfrentar a realidade do setor energético global, entenderia que o gás fóssil nunca foi, e jamais será, um combustível de transição viável. Estudos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reiteram, há anos, que a queima de gás fóssil contribui para o agravamento da crise climática, e que sua utilização deve ser drasticamente reduzida. Com a evolução de tecnologias limpas e acessíveis, como a energia solar e eólica, investir em infraestrutura para o gás é uma escolha arcaica. Insistir no gás fóssil no contexto de uma política de transição energética é tão obsoleto quanto apostar na indústria de CD-ROMs para liderar a inovação tecnológica. Esse anacronismo, porém, tem consequências ainda mais graves, pois impacta diretamente a saúde do planeta e de seus habitantes.

A insistência do governo em apresentar o gás fóssil como parte de sua estratégia de transição energética revela-se ainda mais alarmante quando observamos os impactos já visíveis dessa política em regiões como a Amazônia e o Nordeste. Em Silves, no Amazonas, o projeto de extração de gás no Campo de Azulão está prejudicando o povo indígena Mura, comunidades ribeirinhas e a floresta. A extração ocorre sem licenciamento ambiental adequado e desrespeita frontalmente a Convenção 169 da OIT, que garante o direito à consulta prévia e informada aos povos indígenas sobre empreendimentos que afetam seus territórios.

No Maranhão, a ameaça do fracking — técnica de extração banida em diversos países — paira sobre a população de Santo Antônio dos Lopes, que já sofre com os impactos das termelétricas e da extração convencional de gás. O governo deveria ouvir as evidências científicas que associam o fracking a terremotos, contaminação de água e solo, e danos à saúde humana. No entanto, as autoridades parecem fechar os olhos para essas evidências, permitindo que interesses corporativos prevaleçam sobre o bem-estar coletivo.

A resistência à captura do Estado pelos interesses do lobby fóssil existe e vem sendo conduzida pelas comunidades mais diretamente afetadas. Povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais e moradores das periferias urbanas estão na linha de frente da luta por uma transição energética justa. Essas comunidades já se mobilizam ativamente contra a expansão do gás fóssil e demandam alternativas energéticas que respeitem tanto o meio ambiente quanto seus direitos.

Além dessas resistências locais, organizações da sociedade civil também têm oferecido caminhos concretos para a transição energética. No mesmo dia em que o governo lançava sua tímida PNTE, o Observatório do Clima — uma rede de ONGs climáticas — apresentou uma proposta de metas de redução de emissões (NDCs) para o Brasil, alinhada com os compromissos globais de mitigação da crise climática. O plano destaca a necessidade urgente de interromper qualquer novo projeto de petróleo e gás, propondo, em vez disso, uma transição para energias limpas e renováveis.

A transição energética brasileira está em uma encruzilhada. Ao invés de sucumbir às pressões do capital fóssil, que busca perpetuar um modelo de desenvolvimento insustentável, o governo deve ouvir as vozes da sociedade civil e das comunidades mais impactadas. A única solução viável para enfrentar a crise climática e construir um futuro sustentável é abandonar o paradigma dos combustíveis fósseis e adotar uma política energética verdadeiramente justa, equitativa e popular. Somente assim será possível atender às necessidades da população e do planeta, e garantir que o Brasil esteja na vanguarda da luta global contra as mudanças climáticas.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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