Cultura
Isabelle Huppert, a imparável
Presidente do júri no último Festival de Cinema de Veneza e com seis filmes rodados entre 2023 e 2024, a atriz, aos 71 anos, nem cogita desacelerar
Presidente do Júri do último Festival de Veneza, encerrado dia 7 deste mês, Isabelle Huppert é uma força da natureza que se divide entre cidades, filmes e palcos de teatro.
No cinema, em cinco anos, ela interpretou, entre outros papéis, a esnobe governanta de uma casa de moda em Mrs.
Harris Goes to Paris; uma líder sindical que é estuprada e em quem ninguém acredita em A Sindicalista; e uma excêntrica estrela do cinema mudo com peruca vermelha na comédia O Crime é Meu, de François Ozon.
Ao longo da carreira, de acordo com o site IMDb, bíblia da indústria cinematográfica, foram 154 filmes. Apenas entre 2023 e 2024, foram seis – sem contar os já rodados e ainda não concluídos. Um desses trabalhos dos últimos dois anos é Sidonie no Japão, de Elise Girard, em que vive uma escritora francesa que vai ao Japão participar da reedição de seu primeiro livro enquanto vivencia o luto pelo marido. O filme estreou no Brasil na quinta-feira 19.
No primeiro semestre deste ano, ela rodou seu segundo filme com a diretora francesa Patricia Mazuy, Les prisonnières, no qual interpreta a esposa suburbana de um prisioneiro condenado. E foi ainda vista, no Festival de cinema de Berlim, em fevereiro, em A Traveler’s Needs, seu terceiro trabalho com o inovador diretor coreano Hong Sang-soo.
“Tenho o imenso privilégio de fazer o que amo. Por isso, não posso realmente chamar de trabalho. É outra coisa”
O filme ganhou o Urso de Prata em Berlim. “Ele é tão especial”, diz Huppert, sobre a estética crua de Sang-soo. “Os dois últimos filmes que fizemos tinham, talvez, seis ou sete pessoas na equipe. Agora são três. Ele faz tudo sozinho – câmera, iluminação. Para mim, é como um pequeno gênio. A linguagem de seus filmes é tão sofisticada, tão inteligente. É tudo muito trabalhado, nada improvisado. Você ensaia, pensa e faz o filme em dez dias.”
Poucos meses depois, ela estrearia em Londres o monólogo Mary Said What She Said, um extraordinário retrato solo de Mary Stuart, rainha da Escócia, escrito por Darryl Pinckney e dirigido pelo veterano experimentalista americano Robert Wilson.
Sozinha no palco durante 90 minutos, ela executou, nesse espetáculo, algo entre um rito e uma elaborada dança cortesã, com movimentos estilizados e repetitivos e momentos de imobilidade acompanhados pelo roteiro poético de Pinckney, que lança um feitiço sobre o público.
“Estou sozinha, mas não estou só porque estou mental, emocional e espiritualmente muito cercada, por causa de todas as pessoas com quem estou falando”, disse, sobre a peça. “Além disso, tenho muito o que fazer – a dança, os diferentes níveis de voz. Isso me mantém muito ocupada.”
É assim que Huppert opera. Seja no cinema ou no palco, ela encontra um diretor que admira e confia e então se coloca totalmente a serviço dele. Ela entra em um quadro definido por outra pessoa e se esvazia nele. “Existem tantos limites e não há limite”, diz. “É uma sensação muito, muito estranha. Cada trabalho e cada diretor tem seu próprio universo. Eu faço isso, mas sempre consigo fazer algo diferente.”
Isabelle reluta em recusar qualquer coisa. Até mesmo a Marvel?, pergunto. Ela sorri largamente: “Eu adoraria! Adoraria fazer um filme de gênero. Deve ser legal fazer a vilã – uma vilã de verdade, não a vilã da maioria dos filmes que eu faço, que tem um bom motivo para ser uma vilã. Nunca consigo interpretar uma vilã pura”.
É essa disposição para experimentar qualquer coisa que torna a carreira de Isabelle tão incrivelmente variada. Isso, e também sua carga de trabalho constante, da qual zombou num episódio da série Dix Pour Cent, da Netflix, que se passa em uma agência de talentos francesa.
Em sua participação especial, ela aparece fazendo um filme americano durante o dia e um drama histórico francês à noite, enquanto encaixa entrevistas. “Foi um pouco exagerado”, diz, levantando as sobrancelhas. “Com minha cumplicidade. Foi muito mais engraçado fazê-lo pior do que é. Mesmo que às vezes também seja verdade.” E ri de novo.
Aos 71 anos, ela não dá sinais de desacelerar. Não é apenas a carga de trabalho que é tão notável, mas sua atitude. Charles Chemin, diretor associado de Mary Said What She Said, acha que seu comprometimento envergonha muitos atores mais jovens. “Isabelle é implacável. Ela não desiste; vai até o fundo. Ela tem tanta abertura mental e liberdade! É incrível trabalhar com alguém com esse tipo de aura e fama, mas que dá tanto com tanta precisão durante tantas horas.”
“Não tenho certeza se sinto que estou trabalhando, esse é o ponto”, diz. “Claro, é trabalho. Mas trabalho é algo muito diferente para muitas pessoas. Às vezes, infelizmente, trabalho pode ser sobrevivência, pode ser difícil. Você pode passar a vida fazendo algo de que realmente não gosta, e acho que, nesse caso, uma parte do seu cérebro pode concentrar-se em outra coisa. Tenho o imenso privilégio de fazer o que amo. Por isso, não posso realmente chamar de trabalho. É outra coisa.”
É claro que seu trabalho e sua vida se confundem. Ela nunca fala sobre a família, mas está com seu parceiro, o diretor e produtor Ronald Chammah, há 40 anos. Sua filha, Lolita, é uma atriz que já apareceu na tela ao lado dela. Um filho, Lorenzo, dirige um cinema de arte em Paris e o outro, Angelo, está dando os primeiros passos na produção. Quando Isabelle não está trabalhando, geralmente está assistindo a peças de teatro e espetáculos de dança.
Quando pergunto o que faz para relaxar, ela parece não entender bem o quero dizer. “Nunca vi a vida como um momento em que você relaxa e um momento em que você não relaxa. Às vezes você não faz nada e não é muito relaxante. Às vezes, você trabalha muito e é relaxante.”
As mulheres que Huppert interpreta no palco e na tela podem ser variadas, mas raramente carecem de força. Ela é a negação ambulante do teste de Bechdel, que julga se as mulheres no cinema, no teatro ou na ficção parecem falar só sobre homens. Isabelle é atraída pelo complexo, pelo poderoso e pelo difícil.
Papéis. Sob a direção de Michael Haneke, em A Professora de Piano, e de Paul Verhoeven, em Elle, viveu algumas de suas personagens mais complexas – Imagem: Festival de Cannes e Sony Pictures
E isso se vê em sua Madame Bovary, de Flaubert, na versão de Claude Chabrol; na mulher com fantasias sadomasoquistas em A Professora de Piano, de Michael Haneke; ou na sobrevivente de estupro que busca vingança em Elle, de Paul Verhoeven, papel que lhe rendeu uma indicação ao Oscar.
“Desde o começo, foi uma escolha consciente”, diz. “Ao mesmo tempo, não tive escolha, porque nunca me pediram para ser a mulher sentada atrás do homem, a mulher que dá valor ao homem. Você tem que ser um certo tipo de mulher para fazer esses papéis. Esse nunca foi o meu caso, então, de certa forma, o único lugar que eu poderia assumir era o lugar principal. O que foi bom.”
Sua contribuição ao feminismo parece ser algo mais individual que coletivo, e tem a ver com as mulheres que representa. Um exemplo disso é seu recente papel em A Sindicalista, baseado na história real de Maureen Kearney, líder sindical acusada de mentir sobre ter sido agredida sexualmente após ter chamado a atenção para o envolvimento da China na indústria nuclear francesa.
No filme, parte do problema de Maureen é que ela não se comporta da maneira que se espera das mulheres após serem atacadas, e Isabelle lhe confere uma dignidade impressionante e silenciosa. A capacidade de sugerir sentimentos sob uma superfície enigmática é uma das qualidades que tornam suas atuações tão assombrosas.
Sugiro que ela deve ser corajosa para abordar tais representações de violência sexual e brutalidade, como fez em A Sindicalista e Elle. “Nunca acho que estou fazendo algo destemidamente”, ela responde. “Ou que isso exija um certo nível de ansiedade. “Eu, em geral, confio no cinema e nos diretores. Isso me dá proteção contra tudo, a afasta do medo.”
Na sequência, cita os cineastas Michael Haneke e Paul Verhoeven. “Quando faço um filme com diretores como eles, sinto-me completamente segura. Sei exatamente o que estou fazendo”, pontua. “Como espectadora, posso imaginar que as pessoas pensem que os atores estão particularmente expostos porque é disso que o filme trata. Mas isso é o filme. Não sou eu fazendo o filme.” •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Isabelle Huppert, a imparável’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.



