Maria Rita Kehl

Opinião

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Recalcados

No passado, assim as mulheres se referiam aos assediadores, homens que mereciam o nosso desprezo

Recalcados
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Ex-ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida. Foto: Mario Agra/Câmara dos Deputados
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Pretendia batizar essa coluna de “Assédio”, mas me dei conta de que já escrevi uma página com esse título. Mau sinal.

Pertenço à geração que, na juventude, começou a se rebelar contra o machismo, ambiente onde o assédio é uma das manifestações mais perturbadoras. Notem que escrevi “contra o machismo”, não contra os homens. A palavra “assédio” não era comum. Quando um homem insistia em importunar uma mulher que não estava a fim dele, nos vingávamos dizendo que ele era “recalcado”. Alguém que não sabia lidar com desejos e emoções. Um bobalhão cuja única superioridade em relação a nós, meninas, era a força bruta. Merecia nosso desprezo.

Na adolescência, já com corpo de mulher, fui alvo de alguns assédios. Rapazes faziam ssss com a língua, manifestação que eu percebia, confusamente, indicar desejo sexual. Vamos entrando no mundo adulto meio às cegas, mas com nesgas de compreensão: crianças sabem “apalpar” os significantes, assim como os atos que eles designam. Uma vez, na adolescência, de pé no corredor de um ônibus lotado, um rapaz começou a se esfregar em mim. Eu vestia, orgulhosamente, sapatos de salto alto. Fui uma adolescente tímida, mas a repulsa (e, nem por um segundo, o desejo) que a bolinação provocou me encheu de coragem. Nem olhei para o assediador. Dei meio passo para trás e finquei o salto do sapato no pé dele. Deve ter doído muito. O cafajeste gemeu, não pelas razões que ele esperava, ao me abordar, e sumiu para o fundo do ônibus.

Não, caros leitores, não fiquei traumatizada. Saí da situação sentindo-me poderosa. Gosto de me lembrar que quem me ensinou esse truque foi minha avó paterna, nascida em 1901. Ao constatar que eu estava me tornando mulher, em vez de me alertar para os perigos advindos dos homens, o que poderia ter tido o efeito de me inibir além do quanto uma adolescente dos anos 1970 já seria inibida, preferiu sugerir alguns truques para me proteger das investidas dos cafajestes. Temo que, a essa altura, leitoras tenham abandonado a coluna, revoltadas porque na época não tenha feito um escândalo no ônibus. Eu tinha 14 anos, era tímida, não me passou pela cabeça chamar a atenção do ônibus inteiro.

Essas lembranças vieram à tona quando soube da demissão do ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, depois da denúncia de assédio feita pela ministra Anielle Franco. Pois é, ministro, o assédio masculino não consta da declaração dos direitos dos homens.

De início, fiquei confusa e dividida em relação ao ocorrido. Não tinha informação exata sobre o que fez o ministro. Uma abordagem romântica? Uma catadupa de palavras chulas? Ou apalpadelas abusivas no corpo da colega? Gostaria que Anielle tivesse reagido com uma bronca pública que humilhasse o agora ex-ministro, de modo a que ele nunca mais repetisse a cafajestada, nem com ela nem com ninguém. Mas percebo que com esta sugestão estaria tentando proteger Silvio Almeida. O que configura paternalismo, no meu caso, “maternalismo”, em relação a um adulto em posição de poder que sabia bem o que estava fazendo e, ainda assim, achou que poderia tirar proveitos secundários de seu cargo de ministro. Pouco depois, outras mulheres o acusaram não só de importunação, mas de abuso da força física, o que configura estupro ou tentativa de. A cor da pele não exime o sujeito de ser um cafajeste.

Minha fantasia menos pessimista sobre como poderia ser o desfecho do caso vem da constatação óbvia de um elemento complicador: ambos são descendentes longínquos de africanos que não vieram para o Brasil a passeio, mas capturados como bichos, para ser explorados no trabalho escravo do Brasil colonial. Por três séculos e meio, descendentes de africanos foram abusados das piores maneiras possíveis pelos colonizadores brancos. O que inclui, além do excesso de trabalho que chegava a matar indivíduos mais fracos, abusos sexuais das mulheres africanas por parte do colonizador. Em consequência de tantos estupros, surgiu no Brasil a etnia dos/as mulatos/as: essas últimas, cantadas em verso e prosa como patrimônio nacional, tornaram-se símbolos da sensualidade brasileira, favorecendo entre nós o recalque do crime mais duradouro cometido em nosso País.

Escrevo sem ter convicções claras. Só torço – e recomendo vivamente – para que os homens parem de sentir-se no direito de assediar as mulheres. “Olá, posso falar com você”? me parece um modo muito mais respeitoso de nos abordar. E, o que é mais vergonhoso, que patrões deixem de coagir funcionárias, as quais muitas vezes deixam de denunciá-los para não perderem o emprego. •

Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Recalcados’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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