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O xis da questão

O autoritarismo emergente dos grandes conglomerados globais é nefasto

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A provedora de internet via satélite acatou a ordem do magistrado para bloquear o acesso à rede social do seu próprio controlador – Imagem: Arquivo/STF e Dimitrios Kambouris/Getty Images/AFP
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O ministro Alexandre de Moraes, ao suspender o funcionamento do X, antigo Twitter, em todo o território nacional, deu cumprimento à Constituição. Sem o cumprimento de decisões do Supremo Tribunal Federal, sem o pagamento das multas aplicadas e sem a indicação de um representante legal, a atuação da empresa no Brasil vilipendia nossa Carta Magna.

Com efeito, a exploração de atividades econômicas, ainda que aparente se sujeitar meramente às regras de livre mercado e aos interesses egoísticos da iniciativa privada, é condicionada pela Constituição. Ela é o elemento responsável pela demarcação das condições e possibilidades das relações econômicas e sociais, cabendo às espécies normativas infraconstitucionais regular a atividade empresarial em busca da preservação dos legítimos interesses em jogo.

Mais especificamente, nossa ordem econômica é, dentre outros, fundada nos princípios da livre iniciativa, da propriedade privada e da concorrência, sendo assegurado o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização estatal, ressalvadas hipóteses excepcionais.

Aos referidos princípios se somam, dentre outros, o da função social da propriedade e o da redução das desigualdades sociais. Também não se pode desconsiderar serem fundamentos da nossa República os valores sociais do trabalho, o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e da marginalização e, ainda, a redução das desigualdades.

A proteção à liberdade individual no plano da produção e de apropriação privada não é incondicionada. Ainda que, por um lado, seja desejável a liberdade de exploração privada, bem como a geração e circulação de riquezas por ela propiciada, o desempenho da atividade econômica deve ser balizado por determinados valores. Para além da mera voluntariedade, é preciso que o ambiente de produção e de inovação se compatibilize com as exigências da Constituição.

Ademais, não há liberdade absoluta que permita aos conglomerados globais, por meio do poder econômico e daquele propiciado pela difusão de informações – e desinformações –, possa se sobrepor a determinados valores. Não deve sujeitar-se a qualquer voluntarismo a obrigação das empresas de dar cumprimento às decisões judiciais. Sem prejuízo da adoção dos meios ordinários de recorribilidade processual, cabe a elas o estrito cumprimento. Do mesmo modo, não podem furtar-se dos meios executórios constritivos, isso por meio da ausência de um representante legal no País e, ainda, de adoção de artimanhas que visem furtar-se de multas.

Os riscos para o sistema de direitos fundamentais não emergem, na contemporaneidade, apenas de fontes estatais de poder. O autoritarismo emergente dos grandes conglomerados globais é, igualmente, nefasto.

Elon Musk, ao retirar o escritório da empresa do Brasil, mas mantendo suas atividades em pleno funcionamento, afrontou nossa Constituição. O mesmo, na realidade, pretendeu estabelecer um poder privado acima do poder do Estado, acima dos direitos e acima do sistema de garantia desses direitos que é a Constituição. Portanto, uma forma de autoritarismo privado.

O que caracteriza o autoritarismo na modernidade é quando o poder político se coloca acima dos direitos. Musk pretendeu estabelecer um poder privado exercente de um poder político acima dos direitos da Constituição e do próprio Estado. Uma espécie de um retorno à Idade Média, quando havia descentralização do poder político e de instituições distintas do Estado.

Defender a democracia e os direitos não significa defender que um poder privado possa se colocar acima da Constituição, dos direitos e das nossas instituições. Para os direitos poderem funcionar, é importante que todos se submetam à soberania estatal, que todos se submetam às nossas instituições, que todos se submetam às leis aprovadas pelo nosso povo.

O poder das redes para a formação da opinião pública em temas de sensível relevância social possui efeitos sistêmicos que impõem ao Direito específica reação. Em tempos de liberdade de expressão, de informação, de comunicação, de opinião e de autodeterminação informativa, são grandes os desafios impostos para a proteção dos direitos fundamentais. A difusão de informações de qualquer natureza e, ainda, o armazenamento de dados pessoais requer compromisso responsabilizatório do poder supranacional das redes. Do contrário, o autoritarismo assumirá feições deletérias sem precedentes. Eis o xis da questão. •

Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O xis da questão’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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