Fashion Revolution

O consumo ‘consciente’ não vai salvar o mundo; ao invés disso, cobre transparência

Enquanto a indústria da moda seguir às escuras em relação à transparência e rastreabilidade, o ‘consumo consciente’ não passará de uma tentativa de greenwashing

O consumo ‘consciente’ não vai salvar o mundo; ao invés disso, cobre transparência
O consumo ‘consciente’ não vai salvar o mundo; ao invés disso, cobre transparência
Embora a data celebre o dia do cliente, empresas não valorizaram relação de marca e consumidor
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O “Dia do Cliente”, assim como o “Dia do Consumidor”, é apresentado como uma oportunidade para “fortalecer” a relação entre empresas e clientes. Nas entrelinhas, porém, trata-se de uma estratégia clara para incentivar o consumo. Com apelos visuais e termos como “sustentável”, “amigo da natureza” e “verde”, muitas marcas jogam nas costas dos consumidores a responsabilidade pelos impactos ambientais. Essa ideia de consumo consciente, muitas vezes, serve como fachada para práticas de greenwashing em um setor que carece de transparência e verdadeiro compromisso com metas socioambientais.

Uma rápida busca pelo termo “Dia do Cliente” revela a verdadeira intenção por trás da data: não há menção sobre valorizar a relação entre marca e consumidor. Os primeiros resultados mostram claramente: “Dia do Cliente 2024: 20 dicas para vender mais”; “Dia do Cliente 2024: 46 ideias para aumentar suas vendas”; “Dia do Cliente 2024: tendências para faturar mais”. A responsabilidade pelos impactos ambientais, sociais e econômicos — e sim, eles existem — decorrentes do incentivo ao consumo excessivo é sistematicamente ignorada pela moda, o setor que mais fatura com vendas online.

A pesquisa “E-commerce Trends 2024”, realizada pela Octadesk em parceria com a Opinion Box, aponta que as roupas são os produtos mais vendidos pela internet. Os números são sempre positivos: uma análise da IEMI – Inteligência de Mercado trouxe alta de vendas na moda outono-inverno. Os dados referem-se a todos os artigos de vestuário comercializados durante a temporada, incluindo roupa íntima, meias, roupa para dormir, roupa casual, jeans, casacos, suéteres, entre outros. “Este número representa crescimento da ordem de 2,8% sobre o resultado atingido em 2023”, aponta o relatório.

No meio dessa avalanche de peças, estão campanhas midiáticas como “algodão mais sustentável”, que buscam atrelar valores socioambientais aos produtos de forma a convencer o consumidor de que aquela empresa é comprometida com as pessoas e o meio ambiente. Mas não é bem o que mostram os dados do Índice de Transparência da Moda Brasil 2023.

O progresso de transparência das 60 marcas com atuação no Brasil analisadas pelo relatório ainda é lento. Pela primeira vez desde a primeira edição da pesquisa, seis marcas pontuaram acima de 60% dos pontos disponíveis, enquanto 16 zeraram a pontuação. Uma marca comprometida com metas socioambientais precisa ser transparente quanto a sua cadeia produtiva. “A falta de transparência e rastreabilidade dificulta saber com certeza se o couro utilizado em determinado produto, seja uma bolsa, um sapato ou uma roupa, realmente veio da Amazônia”, exemplifica o documento.

Ao divulgar suas informações no nível de políticas, mas, principalmente, publicando quais ações efetivas foram realizadas a partir dessas políticas, a marca não só reconhece o impacto negativo do atual sistema de produção, mas assume compromissos de metas socioambientais. Essas metas podem ser: descarbonização da produção, fim da terceirização, equidade de gênero e salarial, comprometimento com a valorização de culturas tradicionais, uso de fibras naturais, redução da produção, entre outras.

A transparência e a rastreabilidade são ferramentas fundamentais no trabalho de contenção do desmatamento e outros danos ambientais, como a contaminação de corpos d’água, porque são informações imprescindíveis para que as empresas possam garantir que sua cadeia de fornecimento está livre de tais impactos. O exercício de mapear e divulgar publicamente listas completas de fornecedores de matérias-primas é essencial para a realização da devida diligência a respeito de questões ambientais e de direitos humanos.

O consumo consciente é uma falácia

A Câmara dos Deputados define “consumo consciente” como “a prática de repensar os hábitos de consumo promovendo um estilo de vida mais sustentável e equilibrado” e “consumir de forma responsável, considerando o impacto positivo ou negativo que nossas escolhas provocam no meio ambiente, na economia e na sociedade”.

Mas e quando não temos essas opções? Onde encontramos roupas feitas de algodão orgânico, cuja mão-de-obra foi paga de forma justa – a contar com os gastos de luz e valores atuais da inflação – a preços que a classe média brasileira possa pagar? Essa opção ainda não existe.

A tese Consumo consciente e sinalização via propaganda: uma análise sob a luz do greenwashing lembra que, apesar de consumidores estarem mais conscientes frente à importância do tema mudanças climáticas, as empresas ainda têm culpabilizado eles pela poluição. “campanhas conscientizadoras ligadas a produtos não geram mudanças imediatas”, salienta, “consumidores somente conseguem escolher entre as opções a eles oferecidas, logo, mesmo com consumidores conscientes, as estruturas vigentes não permitem escolhas sustentáveis”.

Portanto, o melhor a se fazer, enquanto consumidor, no Dia do Cliente, é, ao invés de aproveitar os descontos – eles vão voltar, sempre há temporadas de descontos – cobrar transparência das marcas que você gosta e consome. Elas precisam se comprometer com o impacto que seus produtos e serviços geram no mundo e na vida de todos.

A transparência é o primeiro passo rumo à mudança sistêmica na indústria da moda. Ela leva à responsabilização e à prestação de contas que, por sua vez, levam a mudanças na prática. Sem tal comprometimento das marcas, não é possível ter certeza se elas estão combatendo significativamente a desigualdade global e a crise climática.

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