Mundo
Sangue nas mãos
Antes de fugir de Bangladesh, Sheik Hasina autorizou um massacre de civis


Talvez ela não tenha disparado a arma, mas Mahabubar Rahman sabe quem matou Shoikot, seu amado filho. “Sheikh Hasina é a criminosa responsável por sua morte”, disse. “Foi ela quem nos destruiu.”
A ex-primeira-ministra de Bangladesh fugiu do país no mês passado, em um fim dramático de um regime de 15 anos, dominado por denúncias de tirania, violência e corrupção. Hasina foi acusada de inúmeros abusos aos direitos humanos, mas nada se compara ao que ocorreu nas últimas semanas de julho e início de agosto, enquanto ela se agarrava desesperadamente ao poder ao custo de mais de mil vidas.
O movimento que instigou sua queda inesperada começou pequeno, em protestos estudantis nas universidades. Hasina, notoriamente intolerante à dissidência, ficou irritada. Em resposta, autorizou uma campanha de terror e vingança liderada pelos mais temidos batalhões de policiais e paramilitares. Os manifestantes foram recebidos com cassetetes, gás lacrimogêneo, balas de borracha, pelotas de metal, espancamentos, prisões em massa, tortura judicial e munição de verdade, algumas vezes disparada de helicópteros. À medida que a repressão se intensificava e mais corpos jaziam nas ruas, o movimento se transformava, porém, numa verdadeira revolução. Em 5 de agosto, quando quase 1 milhão de bengalis começou a desafiar as barricadas policiais e um ataque com gás lacrimogêneo para marchar em direção à residência da primeira-ministra na capital, Daca, o comandante do Exército se recusou a ordenar um massacre de civis. Em vez disso, apresentou a Hasina um ultimato: saia agora ou provavelmente será morta nas mãos das massas. Ela embarcou num helicóptero com sua irmã e fugiu para a Índia, onde permanece.
Com Bangladesh agora comandado por um governo interino liderado por Muhammad Yunus, economista ganhador do Prêmio Nobel e ex-adversário político de Hasina, ficou claro que esse foi um dos capítulos mais sangrentos da história do país. O número de mortos foi finalmente confirmado em mais de mil, enquanto cerca de 400 manifestantes perderam a visão de ao menos um olho devido aos disparos de chumbo feitos pela polícia. Muitos, como Rahman e sua família, estão decididos a lutar por justiça pelas mortes de seus entes queridos. Eles estão entre as mais de cem famílias encorajadas a abrir processos policiais diretamente contra Hasina, seus principais ministros, comissários de polícia e oficiais, denunciando toda a cadeia de comando. Imagens de vídeo coletadas naquele dia mostram claramente policiais armados a disparar munição real contra manifestantes no local onde o rapaz foi morto. Foram encontradas balas alojadas nas paredes. “Antes, abrir um processo era inútil, como você pode pedir justiça aos assassinos?”, disse Rahman. “Agora tenho esperança. Mas isso nunca compensará o que ela tirou de nós.”
Mahamudur Rahman Shoikot não estava destinado a se unir aos protestos em Daca. O estudante de 19 anos, descrito como o bebê da família, era mimado quase de forma autoritária por suas irmãs mais velhas e seus pais, que o chamavam de Tuna e raramente o deixavam sair do lado deles. Sua irmã, Sabrina Afroz Sabonti, de 22, comprou a primeira bicicleta dele e fazia seus bolos preferidos. Ela disse que chorou durante uma semana quando descobriu que ele havia criado um perfil no Facebook, temendo que perdesse sua inocência. “Ele era tão alto e bonito, nós o amávamos muito”, disse Sabonti.
O número de mortos passa de mil e há cerca de 400 feridos
À medida que os protestos começaram a irromper em Daca, sua mãe o proibiu firmemente de participar. Shoikot ficou furioso, secretamente reclamando nas redes sociais que se sentia um covarde preso lá dentro, enquanto seus irmãos e irmãs morriam nas ruas, na luta para serem livres. Em 19 de julho, ele fechou a loja de iogurte doce do pai e disse à mãe, imersa em suas orações, que sairia um pouco. Não voltou mais para casa.
Quando o bairro virou uma zona de guerra, cheia de fumaça, gás lacrimogêneo ácido, sons de tiros e gritos, a família de Shoikot tentou desesperadamente falar com ele pelo telefone. Finalmente, um estranho atendeu e deu a notícia devastadora ao pai dele. Este garoto foi morto a tiros, disse. Vá direto para o hospital ou nem terá o corpo de volta. Sabonti, sabendo apenas que seu irmão tinha sido atingido por uma bala, chegou ao hospital aos gritos: “Ele está vivo? Ele está vivo?” Mas quando não a levaram para a enfermaria, mas ao necrotério, ela gemeu desesperada. Lá estava Shoikot, frio e imóvel, coberto de sangue de um ferimento de bala na cabeça. Outros corpos atingidos jaziam ao seu lado. “Foi um tiro para matar, nada mais”, disse. A porta do necrotério foi fechada antes que ela tivesse a chance de tocá-lo pela última vez.
No dia da divulgação da notícia de que Hasina tinha fugido, milhões de civis começaram a encher as ruas em júbilo e muitos se aglomeraram para fazer tumulto na residência da primeira-dama em Daca. Mas Sabonti e seu pai seguiram noutra direção. “Foi a primeira vez que pudemos visitar o cemitério”, relembra. “Estávamos todos chorando, mas quando ficamos junto do túmulo do meu irmão finalmente pudemos dizer a ele: ‘Agora está tudo bem, agora estamos livres’.”
Mesmo com Hasina fora, a busca por justiça tem sido complexa. Durante semanas, os médicos do hospital se recusaram a escrever “tiro” na certidão de óbito de Shoikot, e a polícia inicialmente se recusou a registrar o caso. Muitas outras famílias de mortos nos protestos ainda não recuperaram os corpos. A perspectiva de Hasina retornar para responder à justiça em Bangladesh também é incerta. Yunus prometeu que a ex-primeira-dama “precisa ser trazida de volta para enfrentar julgamento”, mas ela permanece na Índia, onde analistas dizem que seu relacionamento próximo com o governo torna a extradição improvável. Embora haja relatos de que Hasina solicitou asilo no Reino Unido, onde seu filho mora, especialistas dizem ser muito improvável que seja concedido, diante dos crescentes processos criminais contra ela, inclusive por crimes contra a humanidade.
Para muitos em Bangladesh, o enfraquecido sistema judicial do país, que perdeu toda a aparência de independência sob Hasina, não é adequado para o propósito de levá-la a julgamento. Em vez disso, muitos acreditam que será um caso para os tribunais internacionais. “Devemos julgá-la por crimes, mas não é possível responsabilizá-la em tribunais nacionais”, disse o analista político Zahed Ur Rahman. “O Tribunal Penal Internacional é nossa única esperança.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sangue nas mãos’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.