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A proliferação das apostas também preocupa a Austrália

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Apesar de ter 1% da população global, o país abriga 18% das máquinas – Imagem: iStockphoto
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É uma noite tranquila em Fairfield, subúrbio a oeste de Sydney, na Austrália. Em um pequeno prédio de tijolos, uma dúzia de frequentadores dos Apostadores Anônimos se serve de café, chá e empadinhas de carne. A reunião acontece num subúrbio que tem uma das menores rendas médias da cidade e os maiores níveis de perdas em jogos de apostas. Um quinto dos 25 clubes de jogos mais lucrativos do estado de Nova Gales do Sul está aqui, conforme dados do governo.

Um desses clubes, o Fairfield ­Returned and Services League (RSL), fica a apenas dois minutos de caminhada do centro de reabilitação. É um prédio totalmente em desacordo com os modestos blocos de apartamentos e a estação de trens decadente nas proximidades. Uma passarela para pedestres no interior é ladeada por palmeiras e samambaias, tem uma fonte elaborada, um grande saguão. Parece incongruente, isto é, até você perceber que seus arredores são seu suprimento vital. No interior, fora da visão da rua, há centenas de máquinas de jogos. O Fairfield RSL and Clubs Australia não respondeu a pedidos de comentário.

Nova Gales do Sul está atrás apenas do estado norte-americano de Nevada, onde fica Las Vegas, quando se trata do número de máquinas de jogos. Nova Gales do Sul abriga cerca de 90 mil máquinas, o equivalente a uma para cada 88 habitantes. Nevada, com uma população de 3,1 milhões, tem cerca de 120 mil. Mas é um problema em toda a Austrália. O país tem menos de 1% da população mundial e 18% das máquinas de pôquer, ou caça-níqueis, segundo o Australia Institute. O maior fabricante de máquinas de pôquer do mundo é uma empresa australiana chamada Aristocrat. A maioria das máquinas está em locais exclusivos de jogos, como cassinos. Daquelas que não estão nesses lugares, 76% ficam na Austrália. Pode não causar surpresa, portanto, que os australianos também sejam os maiores perdedores per ­capita do mundo, jogando fora 25 bilhões de dólares por ano, de acordo com o Instituto de ­Saúde e Bem-estar. Essa quantia enorme se deve em parte ao fato de que na Austrália a maioria das apostas não acontece em noitadas em cassinos reluzentes, mas silenciosamente nos bares que existem em cada esquina, ou no RSL local. Na maioria dos estados, é mais comum um bar ter máquinas de apostas, conhecidas na Austrália como pokies, do que o contrário. A única exceção é a Austrália Ocidental, que permite as máquinas apenas em cassinos e tem as menores perdas per ­capita em apostas do país.

E as apostas online podem acontecer em qualquer lugar. Um relatório do centro de pesquisas de jogos de apostas da Universidade Nacional Australiana, divulgado em julho, alertou que o jogo ­online “aumentou exponencialmente” no país, com um terço dos entrevistados tendo feito uma aposta online nos quatro meses anteriores. A maioria das empresas de apostas online na Austrália é licenciada no Território do Norte, que tem impostos e taxas menores. O território abriga apenas 1% dos australianos e tem uma economia de 32 bilhões de dólares.

Uma campanha pública defende a proibição total dos anúncios de jogos de azar

Tim Costello, principal defensor da Aliança pela Reforma dos Jogos de Apostas, comparou o jogo na Austrália às armas nos Estados Unidos. Assim como para o controle de armas, a maioria dos australianos quer leis mais rigorosas sobre publicidade de jogos de azar. “De cada dólar que passa por uma máquina de pôquer, 63 centavos vêm de alguém viciado”, afirma. Não há números definitivos sobre a quantidade de suicídios causados por jogos de azar na Austrália, mas, com base em Hong Kong, que tem taxas de jogos de apostas mais baixas, é provável que seja cerca de 20%, estima.

Recentemente, a discussão nacional sobre apostas ficou mais forte, instigada pelo governo trabalhista da Austrália, que propôs uma proibição parcial de publicidade de jogos de azar, muito aquém das recomendações de um relatório parlamentar histórico de 2023 que pedia a proibição total. Algumas empresas de mídia pressionaram o governo para impor uma proibição mais branda devido a preocupações com as receitas de publicidade.

Enquanto isso, o governo enfrenta a oposição de seus próprios parlamentares e os independentes pedem um referendo sobre uma proibição total. “Como se dois anúncios de tabaco por hora fosse bom”, compara Costello. Os defensores recomendam que o jogo seja tratado como o cigarro, um problema de saúde. A Austrália proibiu anúncios de fumo em 1992. Hoje, menos de um em cada dez australianos fuma diariamente. Uma pesquisa de 2022 descobriu que três quartos tinham jogado no ano anterior.

O órgão que representa as empresas de apostas online é chamado ­Responsible Wagering Australia. Seu CEO, Kai ­Cantwell, disse que a organização está “comprometida a reduzir a exposição de crianças e indivíduos vulneráveis à publicidade de apostas, ao mesmo tempo que apoia esportes e emissoras que dependem desse financiamento. É crucial encontrar um equilíbrio que impeça os australianos de recorrerem a provedores offshore ilegais”.

Se a Austrália tem uma religião nacional, é o esporte, diz Costello. E com acordos lucrativos de patrocínio de empresas de apostas e a alta audiência de anúncios, esporte e apostas estão unidos. Mas não há nada inerentemente australiano sobre apostas, acrescenta. “Temos a regulamentação mais frouxa do mundo. Só isso.”

A proliferação de anúncios de jogos de aposta é um fenômeno relativamente recente. Quando uma decisão da Suprema Corte em 2008 foi favorável a uma empresa de apostas, houve um “aumento dramático” na publicidade de jogos de azar, segundo a Fundação de Apostas Responsáveis de Victoria. “Esta é a primeira geração de pais que teve de explicar a seus filhos assistindo AFL ou NRL o que é uma ‘multi’”, diz Costello, em referência às apostas em vários resultados agrupados em um. Na última década, houve um “aumento significativo do volume de publicidade de jogos de azar à qual os jovens são expostos”, afirma a doutora Hannah Pitt, pesquisadora da Vic Health na Universidade Deakin.

Quando os frequentadores dos Apostadores Anônimos contam suas histórias, fica claro o grande número de maneiras de quebrar uma sequência sem apostas de um dia, ou seis anos, ou 20. Você pode apostar no seu telefone, em bares, clubes e casas de apostas esportivas. Pode apostar em esportes, política, reality shows, cavalos, cães, arreios e máquinas de pôquer. Um homem diz que está orgulhoso de si mesmo por se exercitar novamente, mesmo que isso signifique passar todos os dias por vários lugares onde ele poderia apostar. Os participantes perderam casamentos, foram presos, perderam suas casas no jogo, perderam empregos, famílias, amigos e sofreram com o vício em drogas. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vício global’

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