

Opinião
O dia seguinte ao abalo sísmico
Na encruzilhada em que estamos, o eco da justiça deve reverberar com respeito à proteção da vítima e à dignidade do acusado


Não seria honesto de minha parte, como alguém que escreve sobre direitos humanos, me esquivar de um tema que tem abalado profundamente nossa sociedade. Este texto é escrito em meio à dor, a um luto coletivo, algo que nós, pessoas negras, conhecemos profundamente. O nome dado ao que estamos sentindo é banzo, uma tristeza ancestral que atravessa gerações e se manifesta como um abalo sísmico. Este momento nos obriga a enfrentar um novo desafio: nos recompor enquanto coletividade e sujeitos em um Brasil que constantemente nos desafia a reafirmar nossa cidadania.
Agora, é fundamental reforçar o pacto democrático. Devemos combater a revitimização de mulheres e meninas, e garantir sua proteção integral. Simultaneamente, precisamos nos agarrar à Constituição e às leis como tábuas de salvação, acreditar no devido processo legal, no direito à presunção de inocência e na produção probatória justa. A dignidade da pessoa humana é inegociável e, mais do que nunca, precisamos reafirmar esses valores para evitar que a crise institucional se agrave e aumente a vulnerabilidade dos grupos historicamente marginalizados.
Na encruzilhada em que estamos, o eco da justiça reverbera com respeito pela proteção à vítima e dignidade do acusado, enquanto a luta histórica de mulheres e negros entrelaça a tragédia individual e o reflexo coletivo, revelando que a busca pela justiça se desdobra em um caminho complexo e incessante por equilíbrio e reconhecimento. Políticas de reconhecimento e proteção das maiorias vulnerabilizadas e à igualdade racial sofrem o impacto direto da atual instabilidade institucional. Este caso, que tanto abalou nossa percepção, é um divisor de águas para a pauta de direitos humanos e igualdade racial no Brasil. Reforça, assim, a urgência de estruturar políticas que protejam os mais vulneráveis.
No dia da posse, nossos ministros foram nomeados ao som do alujá de Xangô, o orixá venerado como o juiz supremo que usa seu machado, o oxê, e possui um formato de dualidade, com lâminas em ambos os lados. O oxê de Xangô simboliza o poder de discernir e promover a justiça e a equidade. Não é possível usar o machado da justiça sem que ele retorne para você com a mesma força, refletindo a verdade e a integridade que Xangô defende. Assim, mais do que nunca, o itã se faz realidade, lembrando-nos que nossa força para buscar justiça será reciprocamente refletida no compromisso sincero com os princípios de equidade e responsabilidade. A grande questão é que o direito à defesa e a proteção da vítima são aspectos concomitantes e devem ser rigorosamente respeitados.
Precisamos olhar para as lideranças negras e suas lutas com o reconhecimento e respeito que merecem. Pessoas negras em espaços de poder constroem legados que, embora valiosos, são constantemente ameaçados por um sistema que insiste em nos reduzir a figuras frágeis e vulneráveis. A interseccionalidade das opressões que atravessam os corpos negros, especialmente das mulheres, precisa ser considerada nas políticas públicas de direitos humanos. Pessoas negras, sobretudo mulheres, que ocupam espaços de liderança, são constantemente atacadas. Carregamos em nossos corpos não apenas a responsabilidade de ocupar esses espaços, mas também toda a fragilidade e as dores ancestrais que nossa história nos impôs.
Lutamos por reconhecimento, para estar nas bibliografias dos concursos, nas prateleiras da academia, como autores de referência. Lutamos para ocupar espaços historicamente negados, para que a igualdade racial voltasse a ser pauta de ministérios e para que direitos humanos deixassem de ser tratados como devaneios. No entanto, diante do cenário atual, sentimos que precisamos nos reorganizar política e institucionalmente diante um momento de grave crise.
Neste momento, é crucial que nos reorganizemos e agarremos firmemente ao pacto constitucional, para que possamos continuar a luta por direitos que jamais devem nos ser retirados. Como bem expressa o velho samba, é hora de “renascer das cinzas” e criar um novo enredo com mãos entrelaçadas, para que o futuro se torne mais justo e promissor. Nossa humanidade, história e nossos direitos exigem esse esforço. Precisamos replantar a esperança e reconhecer que nossa luta pela justiça social, dignidade e por um amanhã melhor, continua firme e constante.
Este texto não pretende analisar os fatos individualmente, avaliar condutas específicas ou expressar opiniões pessoais. Trata-se de uma análise geral sobre como os eventos individuais impactam a conjuntura e o coletivo, destacando a interconexão entre os acontecimentos e suas reverberações mais amplas.
Embora seja impossível ignorar a necessidade de reflexão, é fundamental reconhecer que apenas a justiça tem a responsabilidade de apurar, julgar e sentenciar. Esta manifestação busca oferecer uma visão sobre como estamos processando a complexidade do ocorrido, com uma abordagem que se compromete com a reflexão sobre direitos humanos e justiça, mesmo sob a dolorosa sombra do banzo.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Quem é Macaé Evaristo, escolhida por Lula para assumir o Ministério dos Direitos Humanos
Por CartaCapital
Barroso diz que Silvio Almeida tem direito à ampla defesa
Por Agência Brasil
Movimentos apoiam vítimas após demissão de Silvio Almeida
Por Agência Brasil
Anielle se pronuncia após demissão de Silvio Almeida: ‘ação contundente’
Por CartaCapital