Diálogos da Fé

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A lei de (i)moralidade do Talibã

A lei promulgada pelo Afeganistão, proibindo as mulheres de até falarem em público, nada tem a ver com moralidade, muito menos com religião

A lei de (i)moralidade do Talibã
A lei de (i)moralidade do Talibã
Situação das mulheres no Afeganistão gera preocupação após domínio do Talibã. Foto: Aref Karimi/AFP
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Quando o Talibã voltou ao poder no Afeganistão, em setembro de 2021, fui uma das pessoas que esperavam uma mudança no comportamento deste grupo no que se refere aos direitos humanos, em especial aos direitos das mulheres. Esperávamos realmente que eles tivessem atualizado a abordagem em relação ao direito de as mulheres estudarem, circularem livremente e exercerem suas profissões.

Não demorou muito para o Talibã nos decepcionar mais uma vez – ou apenas mostrar que não havia nenhuma mudança. Uma das primeiras ações foi a divisão das salas de aula nas escolas e universidades. As mulheres e os homens ou não estudariam nas mesmas salas ou se sentariam nos lados opostos das salas de aula. Depois, veio o banimento do estudo das mulheres, a participação delas na vida econômica e, agora, a lei de (i)moralidade que as bane até de falarem em público. Nesse sentido, ultrapassou seus concorrentes como Irã e Arábia Saudita. Aliás, no Irã as mulheres têm livre acesso ao estudo. O que contraria o Islam, no caso do Irã, é a imposição do hijab através da lei e a fiscalização disso por meio da polícia moral.

Já no caso da Arábia Saudita, temos observado avanços positivos, como as mulheres não precisarem mais de um acompanhante da família para sair à rua e poderem adquirir carta de habilitação para dirigir.

Na religião islâmica, há, sim, diretrizes para a vestimenta. Os versículos 30 e 31 do Capítulo 24 do Alcorão deixam claro que tanto os homens quanto as mulheres devem se cobrir. O Alcorão ordena, antes das mulheres, aos homens que desviem o olhar do pecado e se cubram para proteger sua honra. Por isso, a concepção de que questões de honra são aplicadas somente às mulheres no Islam é totalmente errada e, sobretudo, uma das ferramentas para disseminar ódio contra os muçulmanos e sua religião.

O fato de a ordem recair em primeiro lugar sobre os homens também significa que eles são mais suscetíveis a mirar o pecado. Ou seja, mesmo que uma mulher (muçulmana ou não) esteja vestida de uma forma que desperte o desejo dos homens, isso não é pretexto para olhá-la com intenções sexuais. Segundo os exegetas do Alcorão mais clássicos, como Al-Tabari e Al-Baydawi, olhar para algo que é proibido (haram) é o primeiro passo para cometer o próprio pecado. Essa é a razão pela qual a jurisprudência islâmica desenvolveu um método chamado sadd al-zaraï, que pode ser traduzido como “fechar os caminhos que levam ao mal”.

Ainda no versículo 30 deste capítulo, ordena-se que os homens cubram o que seria haram para outras mulheres, exceto a esposa. Embora haja uma diferença de interpretação entre as escolas de jurisprudência islâmica, o senso geral é que o mínimo que o homem deve cobrir é do joelho até o umbigo – esta parte é obrigatória até quando se trata de um ambiente totalmente masculino. Contudo, a regra mais básica e moral, em termos religiosos, é que os homens também se cubram totalmente, isto é, dos pés até o pescoço.

Na maioria dos países com população majoritariamente muçulmana, há também a cobertura da cabeça com o turbante, kefiye ou takiye. Essa é a forma mais simples de mostrar que, na realidade, os homens têm as mesmas obrigações que as mulheres no que diz respeito à abordagem do versículo 31.

Quanto ao versículo 31, há uma abordagem direcionada às mulheres, assim como a do versículo 30 era para os homens. Neste versículo, o Alcorão traz um termo que até hoje ainda não é tão bem esclarecido pelos estudiosos: az-zeynah. Esta palavra é interpretada na maioria dos textos clássicos como “ornamento”, ou seja, aquilo que é atrativo nas mulheres, como joias ou partes do corpo onde as joias são colocadas. Entretanto, um detalhe importante é que tanto o versículo citado quanto um hadice do Profeta Muhammad esclarecem que as mãos e o rosto estão fora da ordem de cobrimento. Ou seja, as mulheres devem se vestir da mesma forma que os homens são ordenados a se vestir. A diferença está no uso do véu para cobrir o cabelo também.

Levando todos esses detalhes em consideração, o que nós vemos na prática do Talibã, obrigando as mulheres a uma série de coisas em nome da religião, é nada mais do que uma farsa para encobrir a misoginia e o machismo dos integrantes do grupo. Por essa razão, a lei que foi promulgada recentemente proibindo as mulheres de até falarem em público nada tem a ver com moralidade, muito menos com religião; é, por isso, uma lei imoral e contrária a todos os ensinamentos do Islam.

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