Daniel Camargos
Repórter especial na 'Repórter Brasil', venceu diversos prêmios por reportagens, entre eles o Vladimir Herzog. Dirigiu o documentário 'Relatos de um correspondente da guerra na Amazônia' e participou da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Daniel Camargos
Dinheiro e publicidade não abafam o cheiro de morte da mineração
Os desastres da Samarco e da Vale expõem as consequências devastadoras da mineração em Minas Gerais, enquanto as empresas e autoridades tentam reescrever o passado


Assistir à pré-estreia do documentário Sociedade de Ferro – A Estrutura das Coisas, na última terça-feira 3, me transportou de volta às semanas em que cobri como repórter os desdobramentos do rompimento da barragem da Samarco, quase uma década atrás.
O filme aborda as causas e consequências dos desastres em Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019. No cinema, revivi a tristeza ao ver imagens da lama no distrito de Bento Rodrigues e a dor das famílias.
Essas cenas me trouxeram de volta um cheiro que ficou impregnado em minha memória desde aquela época: o cheiro da morte.
É o cheiro do corpo de uma criança de cinco anos, decomposto pelos rejeitos de minério, enterrado no Cemitério de Santana. Uma das 19 vítimas mortas pela lama que a Samarco, controlada pela Vale e BHP Billiton, deixou vazar.
Dias depois de acompanhar o enterro, entrevistei o avô de Emanuele Vitória, a garotinha assassinada pela lama. Ele picotava folhas de um limoeiro, amassando-as e levando-as ao nariz numa tentativa de fugir do cheiro da morte.
Cada um lida de forma diferente com as lembranças dolorosas. Algumas maneiras, como a do avô da Emanuele, são singelas. Outras, condenáveis, como as ações da Fundação Renova – criada para reparar os danos do desastre.
Em agosto, a Renova foi condenada por usar recursos para publicidade com “informações imprecisas, dúbias, incompletas ou equivocadas”, de acordo com Ação Civil Pública do Ministério Público Federal. A campanha publicitária foi descrita pelo juiz da quarta Vara Federal Cível e Agrária de Belo Horizonte como uma tentativa de criar uma narrativa fantasiosa a favor da fundação.
Nos últimos anos, essa fantasia propagada pela Renova esteve presente em veículos de comunicação mineiros e nacionais, muitas vezes disfarçada de jornalismo. Isso é chamado de “branded content”, mas, em português claro, é matéria paga.
Uma verdadeira lama.
Foram 861 inserções em TVs e 756 em rádios, além de material em veículos impressos e portais, entre 2018 e 2021. Neste período, a Renova gastou R$ 28,1 milhões em publicidade, que muitas vezes vinha travestida de jornalismo. Desfaçatez com anuência dos veículos de imprensa, que abriram mão do dever de fiscalizar para faturar.
“Esta tentativa de controle da narrativa para criar uma campanha orquestrada de desinformação não é apenas imoral, como ilegal”, segundo a decisão judicial. A Renova distribuiu nota à imprensa dizendo que vai recorrer.
A criação da fundação foi uma estratégia conveniente para as empresas, atribuindo a responsabilidade da reparação a uma entidade nova, reduzindo a exposição da Samarco, Vale e BHP.
Escudada pela Renova, a Samarco segue em marcha de franca expansão. Antecipou para este ano um aumento na produção de pelotas de minério de ferro de 9 milhões de toneladas para 15 milhões de toneladas. Investiu R$ 1,6 bilhão e criou 3 mil vagas de empregos.
Ainda em recuperação judicial, a empresa segue com uma dívida bilionária com detentores de títulos e tenta esticar a corda em uma arrastada negociação com a União, os governos de Minas Gerais e Espírito Santo, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas para repactuação do acordo de mineração.
O primeiro acordo, firmado em 2016, fracassou. A Renova levou cinco anos para concluir as cinco primeiras casas do Novo Bento Rodrigues. Quando ficaram prontas, 55 vítimas já haviam morrido de causas naturais antes do reassentamento.
Na repactuação do acordo, a União quer R$ 126 bilhões. Samarco, Vale e BHP propuseram R$ 72 bilhões. Em junho, os poderes públicos reduziram a pedida para R$ 109 bilhões a serem pagos ao longo de 12 anos. “Está enrolando o povo de Mariana e Brumadinho”, já disse o presidente Lula (PT).
Sem muita esperança na justiça brasileira, 600 mil atingidos, 46 prefeituras e comunidades tradicionais impactadas pela lama que se arrastou pelo rio Doce buscam indenizações na justiça da Inglaterra, uma das origens da anglo-australiana BHP.
Essa estratégia jurídica decolonial incomodou o establishment da mineração. A BHP acionou o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) para ajuizar uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contestando o direito dos municípios buscarem indenização no exterior por danos causados por multinacionais no Brasil. As informações estão em uma ata do Conselho Diretor do Ibram, realizada em maio, à qual a coluna teve acesso.
O Ibram, inclusive, apoia um seminário em Brasília que está sendo realizado nesta quinta-feira (5), cujo tema é “Segurança Jurídica e a Competitividade da Mineração Brasileira”, promovido pelo jornal Correio Braziliense. Entre os palestrantes estão o ministro do STF, Gilmar Mendes, e o Procurador-Geral da República, Paulo Gonet. De acordo com o material de divulgação, eles são “keynote speakers”. Quanta jequice esse estrangeirismo cafona.
Seria apenas risível se essas autoridades não estivessem diretamente envolvidas na ação movida pelo Ibram a pedido da BHP, contra os interesses dos municípios atingidos. O vice-presidente Geraldo Alckmin também é um dos palestrantes.
Na ata da reunião da diretoria do Ibram, a consultora de relações institucionais, Renata Santana, diz também que a realização do seminário é uma estratégia de advocacy.
Em Sociedade de Ferro, o diretor Eduardo Rajabally escolhe o poema “A Máquina do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, como fio condutor para conectar imagens das barragens rompidas em Mariana e Brumadinho, a indústria siderúrgica e seus produtos, como automóveis e outros bens de consumo, intercalando com depoimentos que revelam, como o título sugere, a estrutura das coisas.
Entre os entrevistados estão José Miguel Wisnik, autor de Maquinação do Mundo (Cia das Letras, 2018), que explora a relação da obra do poeta itabirano com a mineração; a jornalista Cristina Serra, autora do fundamental livro-reportagem Tragédia em Mariana (Record, 2018); a deputada Célia Xacriabá (PSOL-MG), e outros que demonstram, com relatos contundentes, a insustentabilidade desse modelo de mineração.
A insustentabilidade evidente para quem assiste ao filme – ou sente de perto o cheiro da morte provocada pela lama –, muitas vezes, não é palpável para quem vive da mineração, como tantos em Minas Gerais.
Dias atrás, uma jornalista, funcionária da Samarco, postou em uma rede social uma mensagem de parabéns para a mineradora pelo aniversário de 47 anos. Achou por bem tratar a empresa de “Sassá”, cheia de intimidade, mas completamente sem sensibilidade diante da dor que a empresa causou.
Essa postagem remete justamente ao poema “A Máquina do Mundo”, de Drummond, onde a oferta de compreender o universo é recusada pelo eu lírico. Assim também, a realidade brutal dos impactos da mineração parece ser deliberadamente ignorada por aqueles que preferem viver na comodidade de sua própria narrativa.
Como Drummond nos alerta, é mais fácil virar as costas para a verdade do que encarar a complexidade e o peso do que fizemos ao mundo – e ao nosso próprio futuro: “A máquina do mundo se entreabriu / para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia”.
Serviço
O documentário “Sociedade de ferro – A estrutura das coisas” está nos cinemas Belas Artes, em Belo Horizonte, e Espaço Augusta, em São Paulo, de 5 a 11 de setembro.
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