Mundo
O yin e o yang
Focado na revolução tecnológica, o país busca novas formas de equilíbrio entre o centralismo e o livre mercado


Hongqi é uma vila rural de 3 mil habitantes no interior da China. Os moradores vivem do cultivo de frutas, como o pomelo, e do turismo. Em julho e agosto, meses de verão, o vilarejo abriga um festival de cerveja, com variedades da bebida produzidas em Sichuan, o estado de Hongqi e dos pandas. Os forasteiros garantem 30% da renda anual de 32 mil yuans, a moeda chinesa, cerca de 25 mil reais. A prefeitura construiu há pouco tempo uma estrada de asfalto. A obra havia sido concebida e convertida em pleito dos moradores durante conversas de jardim, nome dado às assembleias periódicas. Nessas conversas, decidiu-se também uma escala para cada família cuidar da limpeza da vila, e aí era desnecessário o aval do Poder Público, por falta de verba envolvida.
Debates comunitários e suas deliberações são, para os chineses, provas de democracia, atributo que o Ocidente não enxerga no gigante asiático. O presidente Xi Jinping teve no passado uma experiência de líder comunitário, até morou numa caverna. Entre uma conversa de jardim e a cadeira de Jinping, só existe voto direto nas bases. É pelo sufrágio popular que os chineses elegem os representantes de comitês locais e de comitês distritais. Distritos são unidades menores que um município. Dos representantes municipais em diante, é tudo eleição indireta. Os distritais elegem os municipais. Estes escolhem o prefeito e os integrantes dos comitês estaduais. Estes últimos elegem o governador e os representantes na Assembleia Nacional. E esta elege líderes como Jinping. “Em alguns países, a democracia é esquecida depois das eleições”, diz em português fluente, após 13 anos de serviço no Brasil, o diplomata Qu Yuhui, vice-diretor do Departamento de América Latina do Ministério das Relações Exteriores. Na China, prossegue, o povo é ouvido no dia a dia. “Democracia de todo o processo”, eis como as autoridades locais descrevem o que dizem praticar.
A jornalista Li Yunyun, subchefe do Centro das Américas, divisão do Grupo de Comunicações Internacionais do país, cita um dito popular antigo. Questões pequenas são discutidas em grandes reuniões e grandes questões, em pequenas reuniões. Uma reunião de julho com 364 participantes tomou decisões importantes para o futuro de 1,4 bilhão de chineses. Foi na terceira sessão plenária do 20º Comitê Central do Partido Comunista da China, o PCCh. Na República fundada em 1949, não é o governo que tem um partido a respaldá-lo no legislativo e nas ruas. São os comunistas que têm no governo um braço executor, ao qual dão as diretrizes. Na reunião de julho, o comitê resolveu aumentar a dose do rumo trilhado desde a virada da década de 1970 para a de 1980. Jogarão ainda mais fichas no que chamam de “economia socialista de mercado”, combinação de práticas capitalistas e abertura ao mundo, de um lado, e presença estatal em áreas consideradas estratégicas, como ferrovias e transmissão de energia, de outro.
O aumento do bem-estar e a transição ecológica superam a ânsia pelo crescimento robusto
A reforma que desembocou na “economia socialista de mercado” começou com Deng Xiaoping, sucessor de Mao Zedong, “grande timoneiro” da República nascida em 1949. Desde Xiaoping, foram quatro décadas de crescimento médio do PIB de 9% ao ano. Em 1980, a indústria brasileira era do tamanho da chinesa e da sul-coreana somadas. Em 2010, a China passou o Japão e tornou-se a segunda maior economia, atrás apenas dos Estados Unidos. A expansão significou mais dinheiro no bolso, a inclusão pelo consumo. Em 2020, a China anunciou o fim da pobreza extrema, meta de Jinping ao assumir em 2013. Nos dez anos de 2014 a 2023, a renda per capita e o salário médio dos trabalhadores urbanos quase dobraram, conforme dados do NBS, o IBGE local. A primeira chegou a 7,4 mil yuans (5,8 mil reais) no ano passado e o segundo, a 10 mil yuans (7,9 mil reais). Comparação: nesse período, o salário médio no Brasil estagnou em 3 mil reais.
Quem anda por três das dez maiores cidades chinesas, Pequim, Wuhan e Chengdu, como CartaCapital em agosto, quase não vê miséria ou morador de rua. Lojas de grifes ocidentais e shoppings são comuns, em meio a enormes prédios residenciais e comerciais. A verticalização é uma marca, juntamente com ruas largas e arborizadas. O trânsito flui, apesar da multidão, dos carros (em geral novos), de motos do tipo lambreta (a dividir as calçadas com pedestres, inclusive) e das bicicletas de aluguel (amarelas e azuis, cores a diferenciar os aplicativos que as alugam). O metrô capilarizado contribui para evitar o que tinha tudo para ser um caos.
Na reunião de julho, o comitê central reforçou a busca pela “qualidade” do crescimento. Não há meta numérica para o PIB, aqueles patamares de dois dígitos estão mais difíceis de alcançar, pois a base de comparação ficou maior, após quatro décadas de expansão robusta. A desaceleração dará um alívio ao meio ambiente. O discurso verde tornou-se mais comum entre as autoridades. O governo tem uma estratégia de revitalização rural que passa pelo apoio ao ecoturismo em localidades como a vila de Shiyi Qiang, comunidade de minoria étnica com 600 moradores, às portas do Tibet, onde há um comitê local desde 1962.
Outros tempos. A China rural e as novas gerações enfrentam uma realidade não imaginada por Xiaoping – Imagem: iStockphoto e Acervo Presidente Jimmy Carter/Arquivo Nacional/EUA
O partido é onipresente na China. Toda organização (uma empresa, por exemplo) que tiver ao menos três filiados está obrigada a permitir a promoção interna de debates, estudos e difusão ideológica. Nascido em 1921, o PCCh conta com 98 milhões de adeptos, 7% da população. É o tamanho de Argentina e Colômbia somadas. O total de filiados a alguma sigla no Brasil (todas elas) também dá 7% da população (15 milhões), conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral. Na Assembleia Nacional, só o PCCh entra. As outras oito legendas existentes podem fazer parte da Conferência Consultiva Política do Povo, que se reúne uma vez por ano.
Filiar-se ao PCCh leva cerca de dois anos. Primeiro, manifesta-se a vontade de aderir, por meio de uma carta entregue a algum comitê partidário (numa empresa, numa escola). Esse comitê, de cinco integrantes, faz uma triagem inicial. Caso dê sinal verde, começa o processo. O interessado terá de passar por três etapas de uns seis meses cada, e ao fim de cada uma o comitê decide se a candidatura irá adiante. Na primeira fase, o interessado expõe sua visão e pensamento sobre a China. Na segunda, faz militância informal. Na terceira, discute o objetivo da filiação. Ao fim desta, o comitê autoriza ou nega o ingresso na condição de reserva. É um estágio probatório de um ano, ao fim do qual haverá uma avaliação definitiva sobre conduta e desempenho do candidato, antes de a filiação ser sacramentada. É preciso ter no mínimo 18 anos e ser ateu.
O ateísmo reina na China, cerca de 60% da população. Uma pesquisa de 2023, a “Global Religion”, do instituto Ipsos, mostrou outras nações de descrença elevada na região. No Japão, só 19% acreditam em Deus ou em uma força superior. Na Coreia do Sul, 33%. Na Tailândia, 50%. Em compensação, na Índia, que faz fronteira com a China, a crença beira os 80%. O mesmo se dá em países latino-americanos como Brasil e Colômbia, ambos na lista das dez maiores concentrações de renda no 1% mais rico, em um ranking de 2019 da ONU.
O igualitarismo ficou para trás e aceita-se que alguns sejam mais ricos que outros
Na reunião de julho, o PCCh enfatizou a retórica de combate à desigualdade como um dos pilares da “qualidade” pretendida. Desde o início da “economia socialista de mercado”, a China abandonou a ideia de (palavra ouvida pela reportagem) “igualitarismo” dominante na era Zedong. Hoje se aceita que haja alguns mais ricos do que outros. Socialismo, na atual concepção local, seria vida digna e próspera, não conta bancária igual. Construir um país socialista, moderno, forte e belo: os planos para o centenário da República, em 2049. “Eu diria que a felicidade do povo é o objetivo final”, afirma Zhang Xiaomei, diretora-geral do Departamento das Relações Exteriores do estado de Hubei, de forte base industrial e a meio caminho entre Pequim, a capital, e Xangai, principal centro econômico. “Em Inteligência Artificial, a China está na liderança do mundo.”
O comunicado de julho do partido menciona algumas vezes a determinação de manter investimentos pesados em educação, pesquisa, ciência e tecnologia. Ter alcançado excelência em atividades de ponta é o que faz da China uma potência na atualidade. A CGTV, espécie de CNN estatal, é palco de usos interessantes de Inteligência Artificial. Em um laboratório na sede da emissora, em um prédio espelhado preto de aspecto moderno em Pequim, é possível fazer perguntas a Confúcio, filósofo chinês que viveu há 2,5 mil anos, ou assistir à encenação audiovisual de histórias contadas na milenar literatura chinesa. A Mianyang BOE, estatal em Sichuan e fabricante de uma de cada quatro telas (de tevês, celulares, tablets, laptops) no mundo, inventou com Inteligência Artificial um modo de recuperar fotos velhas.
Wuhan, epicentro da Covid-19 que, agora, quer ser a “cidade do futuro”, tem táxis sem motoristas, graças à Inteligência Artificial, responsável por orientar os veículos, fabricados pela Baidu, companhia privada equivalente ao Google, e por uma estatal, a Dongfeng. Também estão nas ruas, em caráter de teste, ônibus sem motorista. São “pilotados” por Inteligência Artificial, embora haja um ser humano na retaguarda em um escritório, caso seja necessário assumir a rédea. Pelos céus, Wuhan logo verá drones entregadores, inventados por uma empresa privada, a Hubei E-Hawk Technology. Exemplos de substituição do homem pela máquina, o terror do proletariado, segundo Karl Marx. O economista alemão ainda é um farol, embora daquele jeito próprio local, o “socialismo com características chinesas”. O comunicado final da reunião de julho menciona o “marxismo-leninismo” que “se deve seguir” e propõe o aumento do “nível marxista de todo o partido e sua capacidade para a modernização”.
Mecanização. O uso intensivo de tecnologia marca a atual etapa do desenvolvimento – Imagem: iStockphoto
A digitalização e informatização são inevitáveis, dizem integrantes do PCCh. A saída para os trabalhadores terá de vir de outra forma, como requalificação profissional ou assistência governamental (a China tem um Bolsa Família). Para os comunistas, Marx segue uma referência pelo que teorizou a respeito da exploração como essência do capitalismo. Sobre os trabalhadores no comando dos meios de produção, aí o pensador alemão não vigora. O país tirou proveito da globalização. Atraiu multinacionais interessadas em pagar pouco, na comparação com salários norte-americanos e europeus, enquanto absorvia técnicas produtivas ocidentais.
O brasileiro Roney dos Anjos Celestino mora em Wuhan, onde trabalha como palhaço, e sente na pele o que vê como exploração. Os horários de seus espetáculos são decididos em cima da hora pelo patrão, as jornadas se estendem além do combinado. Impressiona-o que seus companheiros chineses aceitem passivamente. Um colega de profissão, o também brasileiro Wesley Cavalcante, tem outro depoimento valioso. Neste caso, sobre a segurança nas ruas. “Aqui eu não tenho medo nem do crime, nem da polícia.” Cavalcante é um jovem negro, perfil predileto dos preconceitos e excessos das PMs. Há algumas semanas, caiu em um buraco na rua e perdeu a consciência. Ao acordar, estava numa delegacia. Havia sido socorrido por policiais, que mais tarde o levaram para casa.
Ju de Almeida, gay, estudante na Universidade de Hubei, é mais um brasileiro satisfeito com a segurança chinesa. Na pátria deixada para trás, temia a violência homofóbica. Onde mora agora, não. O que não significa que a vida com o namorado chinês seja um paraíso. A cultura local valoriza bastante a família, o que faz a homossexualidade ser fortemente condenada, pois casais do mesmo sexo não têm filhos, só se adotarem. Segundo Almeida, há na China um mercado subterrâneo de barrigas de aluguel, com mulheres dispostas a engravidar para terceiros. A propósito: o aborto é permitido. E há pena de morte, com injeção letal, para certos crimes, como corrupção. Na reunião de julho do partido, foram expulsos três generais suspeitos de corromperem-se: Li Sangfu, ex-ministro da Defesa, e Li Yuchao e Sun Jinming, ambos ex-chefes de um programa de foguetes do Exército.
Os chineses se orgulham de liderar as pesquisas mundiais em Inteligência Artificial
De volta Marx. O alemão ainda é inspiração para a visão do partido sobre os meios de comunicação. “O conceito de mídia na China é marxista”, afirma Ma Hui, vice-diretor do Departamento Internacional do comitê central. Esse “conceito” tem sido seguido desde 1949. Pressupõe, em linhas gerais, que o PCCh encara os veículos como um “quarto poder” e uma bússola para mostrar ao povo “a verdade”. A China possui 2,5 mil canais de rádio e televisão, conforme a NRTA, sigla em inglês do órgão regulador setorial. Todos são estatais. A atividade é monopólio do governo, embora seja autorizada propaganda privada. Essa rede audiovisual cobre 99% do país. Um canhão ideológico do governo.
A internet tem cobertura similar, 97%, segundo a NRTA, e nela a participação privada é admitida. A difusão da web começou pelas áreas urbanas e chegou à zona rural, lar de 430 milhões de chineses, 35% da população, conforme o NBS (eram 40% em 2017). A tecnologia contribui com o sustento dos camponeses. Estes utilizam plataformas chinesas de vídeos curtos, como Tik Tok e Kwai, para fazer propaganda da produção e negociá-la. Comércio que, no campo ou nas cidades, digitalizou-se rapidamente, a prescindir de moeda física, graças a aplicativos como o Wechat, de conversação e pagamentos. Criador de um canal no Youtube sobre a vida no país, o Pula Muralha, o brasileiro Lucas Brand diz que cartão de crédito é incomum. Quem paga via aplicativo, tem o débito direto na conta. Brand prepara-se para iniciar um curso de mestrado numa universidade na cidade de Nanjing intitulado “Sociedade Chinesa em Transição”, nome revelador das transformações em curso na terra de Confúcio.
O amplo alcance da cobertura de web na China é obra sobretudo da tecnologia 5G, ramo da gigante Huawei, empresa privada vista pelos EUA como braço do governo comunista e inimigo a ser combatido. A infraestrutura de internet e aquelas atividades econômicas que têm o uso de dados como aspecto central integram o conceito chinês de “economia digital”. No início de 2024, o Departamento de Comércio norte-americano decidiu investigar carros elétricos da BYD, montadora chinesa, para descobrir se os veículos seriam espiões disfarçados, capazes de coletar dados. “Suspeita” similar em relação à Huawei. A “economia digital” representa incríveis 41% do PIB do país, de acordo com a NRTA. A estatal Changhong é do setor, a maior do ramo no estado de Sichuan. Nasceu em 1958, passou por metamorfoses, agora fabrica tevês de última geração. Um vídeo institucional da companhia aponta a existência de “inovação tecnológica científica socialista”.
Marxistas, pero… Certas concepções do pensador alemão continuam em voga. Outras foram descartadas pelo comitê central – Imagem: Wang Feng/Imagenechina/AFP
O incentivo à digitalização produziu um efeito colateral indesejado pelas autoridades, que proíbem o uso do Google e do WhatsApp, acessíveis só via roaming internacional ou aplicativos que mascaram a posição geográfica do usuário, os VPNs. Os chineses passam tempo demais no celular a assistir vídeos no TikTok e Kwai. São duas horas e meia por dia, conforme a NRTA. A agência preocupa-se com a profusão de conteúdo pornô e violento. Para proteger menores de idade, baixou em 2021 regras batizadas de “modo contra o vício”. Todo chinês que se cadastra num site ou aplicativo precisa mandar foto do RG, para comprovar a idade. Se tiver menos de 18 anos, as condições de uso serão controladas. O menor não conseguirá assistir mais do que 40 minutos de vídeos por dia, nem vê-los à noite ou na hora das aulas.
No “Parque do Povo”, na cidade de Chengdu, as autoridades controlam um, digamos, mural para solteiros interessados em encontrar a cara-metade. Nesse mural, os pais colocam o currículo do filho ou filha, em formulários escritos e impressos pelo Poder Público (azul para eles, rosa para elas). A China de hoje é isso: uma combinação de modernidade e cultura milenar. E a população, o que acha da vida e do governo? Pesquisa de 2020 feita por uma das repartições da Universidade Harvard, nos EUA, constatou que 93% estavam satisfeitos. É um dos argumentos usados pelo partido em defesa do seu centralismo e do “socialismo com características chinesas”. •
*O repórter viajou a convite do Partido Comunista Chinês.
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
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