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Freio aos justiceiros

De saída do CNJ, Luis Felipe Salomão critica conluio lavajatista e defende quarentena de oito anos para juízes que desejam entrar na política

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Dever legal. “Somos preparados e formados para atuar com independência e isenção” – Imagem: Sérgio Lima/STJ
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Nos dois anos em que esteve à frente da Corregedoria Nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão não se esquivou da ­responsabilidade de passar a limpo os malfeitos da finada Operação Lava Jato. A correição realizada na 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável pela condução do processo na primeira instância, e na Oitava Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o segundo grau de jurisdição, resultou na abertura de processos disciplinares contra a juíza Gabriela Hardt, sucessora de Sergio Moro na 13ª Vara, e contra os desembargadores Carlos Eduardo Thompson Flores e Loraci Flores de Lima. “Encontramos uma situação caótica”, resume o ministro, que hoje defende uma quarentena de oito anos para juízes e promotores que queiram entrar na política, como forma de evitar o uso da toga como trampolim. Confira, a seguir, os principais trechos da conversa. A íntegra, em vídeo, está disponível no canal de CartaCapital no Youtube.

Balanço da atuação

Sou um juiz de carreira, comecei aos 25 anos, mas esses últimos dois anos na Corregedoria foram de um aprendizado muito mais intenso do que todo esse período que passei na magistratura. Visitei os 27 estados, cerca de 90 tribunais e corregedorias espalhados pelo Brasil inteiro. Pude ter uma radiografia completa do Poder Judiciário. Em um universo de 18 mil juízes, a grande maioria trabalha com dedicação, não quer conviver com quem sai do trilho nem usa a toga para efeito ilícito. Há uma vontade muito grande de acertar. Mas, com uma corporação desse tamanho, é evidente que há deslizes, e o Conselho Nacional de Justiça precisa atuar com rigor nesses casos. Além disso, desenvolvemos programas com alto alcance social, a exemplo do Registre-se, que emite certidões de nascimento à população em situação de rua. Deu tão certo que, neste ano, estendemos o programa para a população carcerária e indígena. Entregamos quase 100 mil certidões. Quando você entrega títulos de propriedade de terras para assentados que estão esperando por isso há dez, 20 anos, você leva junto educação, segurança, posto de saúde para a comunidade. Fui a várias dessas entregas e via que os olhos das ­pessoas brilhavam. Isso é muito gratificante.

“Essa restrição seria muito benéfica para evitar o uso da toga como trampolim político”

Abusos da Lava Jato

Quando assumi a Corregedoria, herdei talvez umas 30 representações envolvendo todos os tipos de questionamentos à atuação da 13ª Vara Federal de Curitiba e da Oitava Turma do TRF-4. Em vez de analisar burocraticamente uma a uma, resolvi passar a limpo todo esse processo. Requisitei apoio de peritos da Polícia Federal, alguns deles hoje na Interpol, gente muito gabaritada, atuei com o chefe da segurança do próprio CNJ, selecionei juí­zes com expertise na área e fomos para lá. Na correição, encontramos uma situação caótica. Identificamos destinações de recursos feitas sem nenhum critério, mais de 4 bilhões de reais que, em uma espécie de operação cashback, ia e voltava para abastecer uma fundação de natureza privada. Vimos cooperação internacional sendo feita de forma direta pelos juízes e promotores de Curitiba, sem comunicar os canais oficiais. Havia utilização de bens apreendidos de maneira absolutamente irregular e ilegal. Tudo isso está no relatório aprovado pelo plenário do CNJ. Propusemos a abertura dos procedimentos disciplinares e também encaminhamos o relatório à Procuradoria-Geral da República. Foi um trabalho técnico, totalmente isento, como deve ser o trabalho de um juiz, sem envolvimento político e passional. Tudo isso desagrada interesses, contraria posicionamentos, então tivemos que enfrentar isso com coragem e determinação. A maioria dos conselheiros entendeu que havia elementos fortes para investigar as irregularidades. Agora, com o contraditório, o plenário vai decidir se aplica ou não sanção administrativa. No âmbito criminal, vai decidir se teve ou não teve crime. Até aqui, a resistência a essa atuação se deu muito mais no plano ideológico que jurídico.

Lição. “Juiz não é vingador, que vai exercer o chicote dele com posições midiáticas” – Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil

Quarentena para juízes

O magistrado não pode transviar-se pelo preconceito. Não é vingador, que vai exercer o chicote dele com posições midiáticas. O que surge desses excessos contamina todos nós. É absolutamente impensável para o juiz que desempenha seu papel de maneira imparcial que ele pendure sua toga em um dia e, no outro, entre para um partido político ou desenvolva atividade político-partidária. Ou ainda que vá atuar em um governo, beneficiado pela sua atuação. Isso tem que acabar. Nós temos que ter uma quarentena para juízes, promotores e delegados. Quando terminar a função, independente do motivo, acho que deveria permanecer ao menos oito anos impedido de exercer uma função política. Essa restrição seria muito benéfica para evitar a utilização da toga como trampolim político. Somos preparados e formados para atuar com independência e isenção. Não podemos nos comprometer com uma tese ou com um lado. Trabalhamos com fatos e provas, e recebemos do Estado essas garantias todas para sermos aquele ator que, quanto menos aparece, mais tem eficiência em seu trabalho. Nós arbitramos a partida, dizemos quem tem ou não razão. Não podemos utilizar essa condição para nos beneficiar com cargo político.

“Não fosse a coragem de Moraes, tenho certeza de que o processo democrático não aconteceria da forma como ocorreu”

Moraes, Musk e os ataques ao STF

Esse protagonismo do Supremo não é novo nem exclusivo do Brasil. Hoje, temos um questionamento sobre os limites do Poder Judiciário em todo o mundo. De certa maneira, alguns sociólogos, cientistas políticos e juristas já previam isso, porque acreditavam que este seria um século de questionamento do Judiciário. Após a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se uma revisão dos sistemas de justiça no mundo todo, por causa da falência do modelo que resultou naquela barbárie, com milhões de mortos. Essa grande revisão continua a ser feita, agora com a emergência do fenômeno dos extremismos, de um lado, e das rápidas transformações tecnológicas, de outro. No caso do ministro Alexandre de Moraes, cujo trabalho acompanhei de perto, porque estava no Tribunal Superior Eleitoral, não fosse a coragem e o trabalho dele, tenho certeza de que o processo democrático não aconteceria da forma como ocorreu. O TSE precisou agir para garantir a eleição, desmonetizando canais e perfis nas redes sociais que espalharam notícias falsas sobre o processo eleitoral. Criamos uma jurisprudência para prevenir disparos em massa. Cassamos um deputado que fez uma live contra as urnas eletrônicas no dia da eleição. Todo esse trabalho prévio de organização e combate aos abusos no digital, isso tudo não vem de agora. O capítulo Elon Musk é mais um deles. Por isso, acho que vai se chegar a um ponto de equilíbrio no futuro próximo. Haverá uma acomodação e a população vai perceber o papel de cada um dentro dessa atuação democrática do Judiciário no Brasil.

2022. “O TSE precisou agir para garantir a eleição e conter avalanche de notícias falsas” – Imagem: Clauber Cléber Caetano/Agência Brasil

Futuro no STJ

O Superior Tribunal de Justiça é a Corte da cidadania, é onde está o direito infraconstitucional, a reger o dia a dia das pessoas. Com a experiência herdada da Corregedoria do CNJ, e agora podendo atuar no órgão corregedor do Conselho da Justiça Federal, vou poder trazer um pouco dessa bagagem e fazer com que o tribunal possa cumprir a sua missão: servir como um farol, firmar jurisprudência que seja utilizada pelos tribunais, de maneira que a justiça seja prestada mais rapidamente. O grande problema do Judiciário, hoje, é a questão da demora na resolução dos conflitos. O STJ pode empreender algumas soluções muito relevantes, como a utilização da Inteligência Artificial para acelerar o julgamento de habeas ­corpus e também da área criminal, que hoje tem um grande número de liminares. Ele foi criado pela Constituição de 1988 para desafogar o STF, assoberbado com uma grande quantidade de processos. Hoje, ambos os tribunais continuam sobrecarregados, com uma avalanche de processos para dar conta. Temos esse desafio e pretendo contribuir para solucioná-lo. •

Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Freio aos justiceiros’

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