Cultura
O teatro como lugar de partilha
Para Miguel Rubio, diretor de um dos mais longevos grupos latinos, o ator é uma testemunha de seu tempo


Um dos coletivos teatrais mais longevos da América Latina, o Grupo Cultural Yuyachkani, com sede em Lima, no Peru, completou 53 anos em 2024. Fundado em 1971, durante a ditadura militar, o Yuyachkani resistiu às turbulências de um país que atravessou 20 anos de conflito armado, a partir de 1980, e que, de 2000 para cá, teve uma conturbada sequência de dez presidentes.
Apesar do contexto desafiador, os oito artistas que compõem o núcleo duro do grupo se mantiveram em atividade permanente ao longo das últimas cinco décadas. Hoje, estão todos na faixa dos 70 anos. No repertório, que soma 35 obras, há tanto performances de palco e de rua quanto trabalhos individuais dos atores e atrizes.
Os integrantes do Yuyachkani – palavra que, em quéchua, significa “estou pensando, estou recordando” – também promovem, há 14 anos, o Laboratorio Abierto, encontro pedagógico que recebe participantes do mundo todo.
Quando o coletivo surgiu, nos anos 1970, a arte era a única possibilidade de manifestação pública de um pensamento de esquerda
Na quinta-feira 5, eles abriram a 7ª edição do MIRADA – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, realizado a cada dois anos pelo Sesc São Paulo na cidade de Santos. O evento, que vai até 15 de setembro, tem o Peru como país homenageado e convidou oito coletivos peruanos para a programação. São, ao todo, 33 espetáculos nacionais e estrangeiros.
Nesta passagem pelo Brasil, o Yuyachkani apresenta a peça de rua O teatro é um sonho, uma celebração às artes cênicas e à própria memória do grupo, com elementos que caracterizam seu repertório: música, uso de máscaras, referências andinas e intervenção no espaço público.
De Lima, Miguel Rubio, diretor artístico do grupo, conversou com CartaCapital, por videoconferência, sobre a trajetória do Yuyachkani. “Embora idosos, não perdemos a vocação do aprendizado”, disse, com seu bom-humor característico.
CartaCapital: O que explica a vitalidade do Yuyachkani?
Miguel Rubio: Somos parte de um movimento teatral surgido na América Latina e no Caribe em meados do século passado, durante um período de intensas mudanças políticas e culturais. O grupo, naquele momento, se tornou uma unidade de organização com um modo de produção diferente daqueles de elencos que se juntavam em função de uma montagem. A criação coletiva era, assim, uma resposta política. O teatro deixava de ser entendido apenas como a montagem de um texto. O ator e a atriz se assumiam criadores e se responsabilizavam por aquilo que diziam e faziam em cena. O corpo se tornava o lugar fundamental de enunciação, e apareceram novas teatralidades e novos modos de ocupar o espaço cênico. Essa foi uma revolução completa, feita por artistas desejosos em dialogar com seu tempo.
Além de Lima. Quando jovens, Rubio e os demais integrantes do Yuyachkani mergulharam na memória e nas tradições do interior do Peru – Imagem: Pilar Pedraza
CC: Ao fundar o Yuyachkani, como vocês concretizaram o desejo de “dialogar com seu tempo”?
MR: Criamos o grupo durante uma ditadura nacionalista muito peculiar, sob o governo do general Velasco Alvarado (1968-1975). O fato de que nos chamemos Grupo Cultural Yuyachkani é chave: tem a ver com o fato de que, nos anos 1970, os partidos de esquerda estavam proscritos. A única possibilidade de ter uma presença política ou permitir a aparição pública de um pensamento divergente era por meio dos eventos artísticos e culturais. No início, nosso trabalho era marcado por aquilo que entendíamos como ativismo político. Nossa primeira obra, Puño de Cobre (1971), tinha a intenção de gerar um “teatro-documento” a partir de uma luta sindical de mineiros pela nacionalização das mineradoras que atuavam no país. A repressão do governo à greve foi muito dura, resultando na morte de muitos trabalhadores. Por meio do teatro, quisemos documentar essa luta, e visitamos quase todos os povoados mineiros da Serra Central do Peru. Essa peça foi importante porque, depois do massacre, era difícil os trabalhadores falarem do que havia acontecido. Com a peça, voltamos a colocar o tema em debate. Fazíamos quatro sessões diárias, havia discussões e os próprios mineiros comentavam os eventos. Alguns anos mais tarde, estivemos com grupos de camponeses que haviam participado de um grande movimento popular de recuperação de terras. Foi um período de vínculo estreito com as comunidades e de viagens frequentes ao interior do país.
CC: De que modo o trabalho em distintos territórios do Peru contribuiu para o pensamento ético e estético do grupo?
MR: Éramos jovens de classe média que pensávamos que Lima era todo o Peru. Quando começamos a ir ao campo, nos deparamos com a força da tradição andina, a presença da música e da máscara. A máscara mudou nossa perspectiva cênica. Por isso, passamos a pesquisar as festas tradicionais, sobretudo a festividade da Virgen del Carmen em Paucartambo (povoado da região de Cusco). No início, queríamos ter todas as máscaras e figurinos e colocá-los em cena, mesmo fora de contexto. Com a maturidade, passamos a compreender os princípios que regem a festa andina e deixamos de nos apoiar apenas na forma exterior. As festas nos ensinaram a pensar no espaço cênico como um espaço de partilha, e não em um palco para “o” importante, com os espectadores de outro lado. Nossas últimas peças não têm essa divisão. Em vez de uma obra que se apresenta diante de um público, imaginamos algo que se constrói e se compartilha com esse público in situ.
CC: Como eram as práticas artísticas do Yuyachkani durante o longo período de conflito armado?
MR: Naquela época, não podíamos sair de Lima, pois isso era motivo de suspeita tanto para as forças de ordem do Estado quanto para o Sendero Luminoso. Já tínhamos nossa sede, mas estávamos ainda construindo o teatro. Foi um período duro, mas também interessante, durante o qual pudemos aprimorar nossa formação artística. Findo o conflito armado, fomos convidados a acompanhar as audiências públicas da Comissão da Verdade e da Reconciliação (2001–2003). Assistíamos às vítimas de violência dar seus testemunhos com voz própria. Isso nos fez questionar qual era nosso lugar como artistas e qual era o lugar da representação. Entramos em crise. Como resultado, fizemos a peça Sin Título, Técnica Mixta (2004), uma espécie de depósito de museu, com objetos e documentos pregados nas paredes, entre os quais o espectador podia se mover. Surgiu, então, a figura do ator-testemunha, da atriz-testemunha, que intervém e expressa a própria voz.
“Como somos um grupo antigo, a luta é para que o passado não seja o nosso único presente”
CC: Quais foram as motivações para criar O teatro é um sonho?
MR: A peça surgiu de um projeto feito para o programa Espacios Revelados (iniciativa da alemã Siemens-Stiftung para ações artísticas em espaços urbanos da América Latina). Estávamos em plena pandemia. Escolhemos como foco o Teatro Municipal de Lima, que fica no centro histórico, e imaginamos que dentro do teatro aconteceria uma grande festa, da qual participariam personalidades importantes. Esse evento é interrompido: há um assalto ao edifício e se rouba o piano. Os convidados escapam e resolvem festejar na rua. Quem são eles? Personagens de diferentes obras do Yuyachkani. A festa se completa com a chegada de uma cantora lendária, a soprano (peruana) Yma Sumac. Atuam, na peça, cerca de 60 pessoas – no Brasil, artistas brasileiros participarão dela.
CC: Quais são os próximos projetos do Yuyachkani?
MR: Não temos grandes projeções de futuro. Como somos um grupo muito antigo, a luta permanente é para que o passado não seja o nosso único presente. Mais que realizar obras, nosso foco no momento é pedagógico: produzir reflexões escritas e continuar a promover os laboratórios, que são espaços de esperança e criação. •
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O teatro como lugar de partilha’
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