

Opinião
Marçal e a Justiça Eleitoral
O coach desafia o modelo de governança, que deposita todas as suas fichas na autoridade judicial


Com Pablo Marçal, o coach-candidato na disputa pela prefeitura de São Paulo, adentramos definitivamente na era das campanhas eleitorais digitais. No Brasil, a migração para o ambiente virtual é uma realidade desde 2010 e, como bem lembrou Arthur Itaissu, não é novidade que figuras com grande exposição midiática busquem converter capital social em capital político. Nos Estados Unidos, Ronald Reagan transitou de Hollywood para a Casa Branca, e Barack Obama se tornou um ícone em termos de mobilização eleitoral nas redes sociais. No Brasil, Silvio Santos tentou a presidência, enquanto Jair Bolsonaro implementou a estratégia de comunicação política digital mais bem-sucedida até então. Com Marçal alcançamos um novo patamar no desenvolvimento tecnológico da comunicação política, com implicações para a competição eleitoral e para a própria democracia.
A transição do sistema de mídia de broadcasting para as mídias sociais altera o perfil dos candidatos e a dinâmica da competição eleitoral. Figuras como Reagan e Silvio Santos tendem a se multiplicar e diversificar na arena política à medida que o sucesso eleitoral depende menos das estruturas tradicionais de mídia com que contavam as “celebridades” de sua época. O sistema atual demanda, ao contrário, somente alguns recursos à disposição de milhares de influencers, habilitados para emergir na cena política pela conversão de likes em votos. O fenômeno Marçal revela de forma trágica as dificuldades do atual modelo de governança eleitoral em lidar com a dinâmica das campanhas digitais. O sistema de mídia tradicional, voltado para um público de massa, favorecia a moderação, pois mensagens radicalizadas tendem a provocar reações negativas de uma parcela. Já as mídias sociais estimulam discursos extremistas, direcionados a nichos específicos e fidelizados, seguindo a lógica da economia da atenção, para a qual a moderação é ineficaz. O discurso moderado e bem fundamentado perdeu valor nas mídias digitais, nas quais a intensa competição por atenção favorece o radicalismo e o sensacionalismo.
No caso de Marçal, chegaram à Justiça Eleitoral questionamentos acerca da legalidade de sua candidatura e outros que apontam ilegalidades de campanha. De concreto, até o momento, decisão da Justiça Eleitoral de São Paulo determinou o bloqueio de seus perfis nas redes sociais. Marçal recorreu, alegando que a decisão é infundada e não passa de um ato de “censura”, uma “arbitrariedade” que se soma a tantas outras que constituiriam uma estratégia de “perseguição”. Convocando seus seguidores a se manifestar contra a decisão judicial, utilizou-se do episódio para reforçar o discurso antissistema, apresentando-se como vítima, alvo dos poderosos, cujos interesses estaria desafiando.
A reação de Marçal é a melhor expressão do populismo digital, beneficiado pelo desenvolvimento tecnológico da comunicação política à medida que o ambiente digital favorece a sua radicalização. O ataque às instituições, a desqualificação das regras do jogo, o escárnio da autoridade judicial, é tudo parte da “gramática” da comunicação política radicalizada que encontra no ambiente virtual terreno fértil. Em uma campanha, a Justiça Eleitoral torna-se alvo preferencial de candidatos com perfil populista autoritário. Paradoxalmente, dela depende a manutenção da integridade eleitoral que faz com que candidatos e eleitores continuem a acreditar nas eleições. Nesse sentido, o fenômeno Marçal desafia o modelo de governança eleitoral brasileiro, que deposita todas as suas fichas na autoridade judicial. Para funcionar, o modelo pressupõe uma Justiça Eleitoral independente, do que decorreria a percepção pública da imparcialidade de juízes e tribunais e, consequentemente, da legitimidade de suas decisões.
Em um país dividido, ampliam-se, contudo, os desafios do Poder Judiciário para atrair confiança pública. No contexto eleitoral, a assertividade da Justiça Eleitoral pode municiar estratégias de politização, como no caso Marçal. A eventual suspensão de sua candidatura à prefeitura de São Paulo poderia, paradoxalmente, consolidá-lo na corrida presidencial de 2026. Por outro lado, a parcimônia da Justiça Eleitoral pode comprometer a integridade eleitoral. •
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Marçal e a Justiça Eleitoral’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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