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A guerra na Ucrânia amplia os riscos de um novo desastre atômico mais letal do que Chernobyl

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Memória. Plokhy, historiador, escreveu um relato definitivo da tragédia em Chernobyl – Imagem: iStockphoto e Berkley Center/Universidade Georgetown
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Não há muitas histórias divertidas sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, diz o ucraniano Serhii Plokhy. Mas ele não conseguiu evitar uma risada muito sombria ao ouvir uma notícia recente. Foi uma declaração do Ministério das Relações Exteriores da Rússia. Diante da perspectiva de as forças ucranianas avançarem pela fronteira em direção a uma usina nuclear russa em Kursk, o ministério pediu a intervenção urgente da Agência Internacional de Energia Atômica.

Dada a conduta da Rússia nos últimos dois anos – o bombardeio e a tomada à força da usina elétrica ucraniana em Zaporizhzhia e, durante algum tempo, a ocupação do local contaminado em Chernobyl em total desconsideração pelos riscos envolvidos, as ironias foram demasiado brutais até para ele. Renomado historiador de Harvard, Plokhy é o autor do relato definitivo não apenas da origem da guerra atual, mas do desastre de Chernobyl de 1986, pelo qual ganhou o prêmio Baillie Gifford de não ficção em 2018, e que no ano seguinte foi uma fonte para o fabuloso drama da HBO sobre o acidente. Seu novo livro, ­Chernobyl Roulette, a ser publicado em regime de urgência no próximo mês, é um relato interno de como as instalações de energia nuclear se tornaram um elemento aterrorizante nas guerras atuais.

Plokhy detalha, com cuidado professoral e no ritmo intermitente de um ­thriller, exatamente o que aconteceu depois de as forças russas entrarem na zona de exclusão de Chernobyl na primeira semana da invasão, em fevereiro de 2022, prendendo mais de cem trabalhadores no interior da usina durante quase cinco semanas, até ela ser libertada pela Ucrânia. De muitas maneiras, o historiador estava destinado a contar esse fato. Nasceu à sombra de ­Zaporizhzhia, e algumas centenas de quilômetros a favor do vento de Chernobyl (ele tinha 19 anos na época do desastre). Deixou a Ucrânia em 1991 para dar aulas no Canadá, quatro meses que coincidiram com o golpe fracassado em Moscou que precipitou o colapso final da União Soviética e a independência da Ucrânia.

O mundo está despreparado para uma crise nuclear em meio a uma guerra, diz o historiador Serhii Plokhy

Grande parte de seus textos desde então, disse-me numa chamada ­online, com uma risada, têm sido tentativas de entender “exatamente o que aconteceu nos quatro meses do meu ano sabático”. O livro atual é o último episódio dessa missão. Você o lê com crescente desconforto, principalmente porque os fatos caóticos descritos acontecem em tempo real. No dia em que conversamos, a BBC abriu seus boletins com relatos de um grande incêndio em Zaporizhzhia, um complexo de reatores muito semelhante à usina arcaica de Chernobyl.

O livro de Plokhy detalha como a AIEA foi até agora impotente para mitigar essas ameaças. E argumenta que “até descobrirmos como proteger as usinas nucleares existentes não temos condições de construir novas”. Contraintuitivamente, acredita que a ameaça atual em Kursk oferece uma pequena janela de esperança. “Agora que até a Rússia aponta o dedo para a AIEA, talvez haja uma oportunidade”, avalia, “de observar como estamos basicamente despreparados para lidar com uma crise nuclear em uma guerra, quando instalações que foram imaginadas como ‘átomos para a paz’ tornam-se ‘átomos para a guerra’.”

O fato de a Rússia ter convidado ­Rafael Grossi, diretor da AIEA, para visitar sua instalação em Kursk dá apoio provisório a essa ideia (embora a avaliação pré-visita de Grossi de que “é uma usina do tipo Chernobyl”, na qual os “elementos de combustível nuclear” são alojados “em algo como um ginásio esportivo” aumente o alarme). “O que vem da Rússia por enquanto é apenas retórica”, critica Plokhy. “Mas poderá chegar um momento em que seja mais do que apenas uma tentativa de culpar outros. E talvez novos protocolos possam ser discutidos.”

Alerta. A Rússia relatou à agência de energia atômica os riscos de um ataque ucraniano em Kursk – Imagem: Ministério da Defesa da Ucrânia/AFP

Seu relato da monumental arrogância da ocupação russa de Chernobyl pode servir como prova principal da necessidade de tais controles. “As palavras que eu usaria são ‘extrema imprudência’”, diz sobre essa operação. “Um total desrespeito à saúde e à vida humanas. E desse ponto de vista mostra que muito pouco mudou desde 1986 em termos de cultura política russa.” Como mostrou seu livro original – e a base principal do drama de tevê Voices from Chernobyl, de ­Svetlana Alexiyevech –, o apocalipse foi o resultado não apenas de uma tecnologia antiquada, mas de um sistema de comando e controle que priorizou fatalmente a política partidária em detrimento da ciência, da saúde e da segurança.

Plokhy sugere que o regime de ­Vladimir Putin não aprendeu nada com esse desastre. “Há esse episódio do conflito atual, que demonstra a extensão de sua imprudência”, acusa. “Enquanto eles ocupavam o local, o exército russo começou a cavar trincheiras na zona de exclusão na borda da Floresta Vermelha.” As evidências sugerem que tropas recrutadas, sem qualquer roupa ou equipamento de proteção, escavaram alegremente algumas das terras radioativas mais tóxicas da Terra.

Outra cena crucial no livro atual envolve o momento extraordinário no qual os comandantes das forças russas entraram na sala de operações da usina de Chernobyl. O plano era levar sob custódia os especialistas em segurança e cientistas que monitoravam a usina, sem nenhuma contingência aparente para o que viria a seguir. Plokhy descreve como o equilíbrio de poder naquela sala mudou rapidamente quando os encarregados da usina observaram friamente que, se entregassem o controle, também entregariam a enorme responsabilidade e os riscos de manter Chernobyl segura. “Aquela cena foi incrível”, define. “Minha surpresa ao revisitar Chernobyl depois de 1986 não foi apenas ver que a Rússia não havia mudado sua abordagem, mas ver o quanto a Ucrânia havia se afastado daquela cultura de 1986. Os responsáveis pelo local depositaram sua fé nos regulamentos e protocolos. Eles acreditavam que seriam traidores se abandonassem a estação.”

A cena, sugiro, seria uma sequência adequada para o teledrama sobre ­Chernobyl. Plokhy concorda. “A história de 1986 foi de catástrofe, e catástrofes normalmente atraem mais atenção. A catástrofe não aconteceu dessa vez. Em vez disso, é uma história fenomenal, se preferir, de sequestrados a sequestrar sequestradores.” O exército russo veio e fez reféns, e os reféns imediatamente voltaram suas expertises contra eles.

O medo da destruição mútua conteve os ânimos durante a Guerra Fria. Mas e agora?

Para contar essa história, Plokhy teve acesso aos depoimentos dos envolvidos do lado ucraniano, coletados após a libertação. “Chernobyl, obviamente, tem um significado especial no mundo todo, particularmente na Ucrânia. Então, muitos foram imediatamente para o local coletar informações. Tive muita sorte porque o chamado projeto de acerto de contas me permitiu usar esses materiais. Minha tarefa, na verdade, foi dar sentido a tudo isso.”

Obviamente, ele tinha interesse pessoal em tudo. Quão fácil foi para ele ser objetivo? “Bem, tomei a decisão de que, ao escrever o último livro, The ­Russo-Ukrainian War, eu tinha uma missão, contar a história dessas pessoas”, garante. “E sei que, para ser eficaz nessa missão, tinha de deixar as emoções de lado, ou não permitir que elas dominassem. Tentei sempre que possível usar fontes russas, mas, inevitavelmente, a maioria veio do lado ucraniano. Ainda assim, no fundo da minha mente, constantemente, eu pensava: ‘Ok, tenha cuidado com o que você diz. Você não tem todas as fontes’.”

Plokhy tinha família em Zaporizhzhia quando a guerra começou. Seu livro anterior foi dedicado e prestou homenagem a seu primo, morto em combate, perto de Bakhmut, em outubro de 2022. Outros integrantes da família ainda estão lá? “Minha irmã ficou em Zaporizhzhia por um longo tempo. Ela não queria ir embora, tentamos convencê-la e conseguimos. Felizmente, quando os russos tomaram a usina nuclear, ela já estava saindo.”

Ele tem obtido informações do local agora? “Os moradores precisam ter muito cuidado. Houve muitas prisões. Então, não, eu não tenho esse acesso. Como todo mundo, leio o que russos e ucranianos têm dito sobre este último incêndio em Zaporizhzhia. Basicamente, acho que os ucranianos provavelmente contam a história mais próxima da verdade: que, por causa do que está acontecendo em Kursk, os russos estavam interessados em encenar algo e criar alarme queimando pneus lá. Mas não tenho certeza.”

Esse impasse de alto risco justifica sua tese mais ampla de que o mundo não tem prestado atenção suficiente na escala da ameaça nuclear. Ele sente-se como uma Cassandra, chamando atenção para um desastre iminente, mas sem ninguém ouvindo direito? “Sim, tenho esse sentimento. E entendo que há boas razões para olharem para o outro lado. Uma delas também foi produzida pela guerra, após sanções ao petróleo e ao gás russos. Alguns querem ver a energia nuclear como a salvadora, não apenas em longo prazo por causa das mudanças climáticas, mas no curto prazo, economicamente. Apesar do que está acontecendo, os últimos dois anos trouxeram as histórias mais positivas sobre energia nuclear desde antes do desastre de Fukushima, em 2011.”

A guerra não é a única coisa que destaca as ameaças a uma maior cooperação internacional em segurança nuclear. Obviamente, Plokhy observa esses eventos se desenrolarem em um ano eleitoral norte-americano. Uma segunda Presidência de Donald Trump, sem dúvida, colocaria em risco o futuro independente da Ucrânia, bem como minaria ainda mais a autoridade da ONU. Como ele vê essa perspectiva? “Não será surpresa para vocês que eu olhe para isso com horror, não apenas em relação a Trump, mas sobre como seu tipo de comportamento político pode ser adotado por tantos dos meus atuais compatriotas.”

E o que dizer da outra grande variável no terrível conflito? Ele sente que o poder interno de Putin tem diminuído? “Kursk é um desafio enorme. Ainda há medo de Putin no Ocidente, certamente. Mas, historicamente, havia menos medo na Ucrânia, e ainda há.” Uma maneira de olhar para a guerra, diz, é “Putin marchando de um fracasso para outro”.

Esse fato traz consigo outras ameaças. “Devemos lembrar do discurso de Winston­ Churchill sobre o equilíbrio do terror na Guerra Fria”, insiste Plokhy. “Foi esse medo de destruição mútua que ajudou o mundo a evitar o cataclismo durante a Guerra Fria. Mas eu diria que o equilíbrio do terror agora é de natureza mais complicada. Essa imprevisibilidade é o que torna este momento tão perigoso.”

Apesar de tudo, ele não perde, no entanto, a esperança de que um novo consenso seja formado. “Talvez”, diz Plokhy, “a energia nuclear seja o lugar onde podemos começar a criar esse consenso. Talvez a lição de 2022 seja que este é o momento que deve ser aproveitado para falarmos sobre a segurança das instalações nucleares e, então, construir algo para o futuro.” Se for esse o caso, seu livro seria um bom lugar para essas discussões começarem. •

Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Roleta-russa’

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