Mundo

assine e leia

A promotora e o caipira

Os democratas apostam em Tim Walz para superar as resistências a Kamala Harris na América profunda

A promotora e o caipira
A promotora e o caipira
“Embaixador”. Walz, branco, nascido em Nebraska, sem papas na língua, irá ciceronear Harris nos rincões que dão folgada vantagem a Trump – Imagem: Kamil Krzaczynski/AFP
Apoie Siga-nos no

Quando Kamala Harris e o governador de Minnesota, Tim Walz, subiram ao palco juntos pela primeira vez, o Liacouras Center, na Filadélfia, brilhava em vermelho, branco e azul, enquanto ­Freedom, de Beyoncé, tocava alto e a multidão vibrava. Walz, que havia sido arrancado da relativa obscuridade horas antes, ao aceitar o convite para entrar na chapa presidencial democrata, pousou a mão sobre o coração, quase perplexo com a recepção. Ele acenou. Fez uma reverência. Apontou para a multidão e para Harris. Sorriu, riu e fez mais uma reverência. Quando chegou sua vez de falar, Walz virou-se para Harris: “Obrigado, senhora vice-presidente, pela confiança que deposita em mim, mas, talvez mais ainda, obrigado por trazer de volta a alegria”.

Foi um momento marcante em um ciclo eleitoral impensável algumas semanas atrás, quando o Partido Democrata parecia conformado com a perspectiva de uma segunda e ainda mais devastadora derrota para Donald Trump em novembro próximo. Mas então Joe Biden abandonou sua tentativa de reeleição e os democratas, com rapidez e decisão incomuns, abraçaram a vice como porta-estandarte. A ascensão de Harris e a escolha de Walz como parceiro, aplaudida por democratas de todo o espectro ideológico, transformaram o partido. “De repente, a eleição parecia nos escapar e agora estamos em seu comando”, disse o estrategista democrata Simon Rosenberg, autor sempre otimista das Hopium Chronicles, no site Substack. “De todas as maneiras imagináveis, prefiro muito mais ser nós do que eles.”

A estreia na Filadélfia foi a primeira escala de uma turnê de vários dias por estados decisivos como Pensilvânia, ­Wisconsin, Michigan, Arizona e Nevada, projetada para apresentar o “Treinador Walz” e animar os estadunidenses para a corrida de três meses até a eleição. Ao longo do caminho, Harris e Walz se apresentaram como “guerreiros felizes”. Ao contrário da campanha de Biden, que havia enquadrado a disputa como uma escolha existencial entre um presidente que defenderia a democracia e um ex-presidente que a destruiria, Harris buscou apresentar a corrida como uma opção entre sua visão de um “futuro mais brilhante” e a “agenda retrógrada” de Trump. Nos comícios, os presentes entoam o grito de guerra da campanha: “Não vamos ­recuar”. “Queremos viver num país de liberdade, de compaixão, de Estado de direito?”, perguntou Harris na cidade rural de Eau Claire, em Wisconsin. “Ou num país de caos, medo e ódio?” Mais tarde, a governadora de Michigan, Gretchen Whitmer, apresentou Harris para milhares de eleitores num aeroporto nos arredores de ­Detroit: “Precisamos de uma mulher forte na Casa Branca. Está mais que na hora”.

A campanha arrecadou 36 milhões de dólares 24 horas após o anúncio do vice

Em um salão do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Automobilística, seu presidente, Shawn Fain, disse que os norte-americanos enfrentam um momento “de que lado você está?”, e ele está do lado da “mulher durona que ficou conosco na linha de piquete”. Em um comício perto de Phoenix, no Arizona, Harris atraiu sua maior multidão até então, mais de 15 mil, conforme estimativa da campanha. Antes dela, John Giles, o prefeito republicano de Mesa, pediu aos colegas republicanos e independentes para que “por favor, juntem-se a mim para colocar o país acima dos partidos e conter Donald Trump”. O tour de apresentação terminou em uma arena em Las Vegas, onde milhares enfrentaram o calor intenso para ver os candidatos democratas. Lá, Harris maravilhou-se com a ascensão de sua nova chapa: uma filha de imigrantes criada por uma mãe solo na Califórnia e um “filho das planícies de Nebraska” que cresceu numa fazenda. “Só nos Estados Unidos é possível que os dois concorram juntos para a Casa Branca.”

Pesquisas recentes refletem uma reviravolta impressionante da chapa democrata, agora travada numa batalha altamente competitiva. A campanha de ­Harris recuperou o terreno perdido entre os eleitores mais jovens e muitos daqueles desanimados com Biden, de 81 anos. Também reduziu significativamente, e em várias novas pesquisas ultrapassou, a liderança de Trump nos estados-chave que os democratas precisam conquistar. O Cook Political Report, uma pesquisa apartidária, ajustou sua perspectiva para ­Arizona, Geórgia e Nevada, estados que pareciam escapar dos democratas, de “inclinado para os republicanos” para “indeciso”.

No escuro. Trump ainda não sabe como lidar com a candidata democrata – Imagem: Natalie Behring/AFP

Harris conquistou 36 milhões de dólares nas primeiras 24 horas após ­nomear Walz como companheiro de chapa, somando-se à sua arrecadação recorde nas últimas três semanas, desde a desistência de Biden. O aumento dos fundos arrecadados foi acompanhado pelas inscrições de voluntários, enquanto democratas, organizadores e ativistas relatam aumentos igualmente drásticos em doações e apoio. Nas redes sociais, os jovens compartilharam sua empolgação pela nova chapa democrata com memes e piadas.

Enquanto Harris e Walz cruzam o ­país, também correm contra os esforços dos republicanos para rotular o candidato a vice como um “radical de extrema-esquerda”. Nessa versão, a persona folclórica de Walz esconde um histórico de governo liberal que os democratas veem como um modelo para o país. Muitos democratas acreditam, no entanto, que Walz, ex-professor de Estudos ­Sociais e treinador de futebol americano no ensino médio, nascido em Nebraska, finalmente seja um embaixador confiável na América rural, onde os eleitores brancos que ajudaram a eleger Barack ­Obama abandonaram o partido em favor de Trump. “Os eleitores rurais entraram no chat”, disse Jane ­Kleeb, presidente do partido em Nebraska, que apoiou a escolha de Walz. “Esta nova chapa realmente expande o mapa para os democratas além dos estados indecisos e das costas Leste e Oeste.”

Nebraska, a rigor, não é considerado um estado indeciso no sentido tradicional e não faz parte da turnê de estados “campos de batalha” dos democratas. Entretanto, por uma peculiaridade do processo eleitoral, um só voto do colégio eleitoral do segundo distrito congressional do estado pode ser decisivo numa disputa acirrada. Kleeb espera uma visita após a convenção democrata no fim deste mês. Segundo ela, Walz não se enquadra perfeitamente numa caixa política, mas que personifica o espírito de bairro do ­Centro-Oeste e, para usar a frase do governador, de cuidar da própria vida. “Em ­Minnesota, respeitamos as escolhas pessoais do nosso vizinho”, disse Walz em ­Wisconsin. “Não gosta de um livro? Não o leia.”

Os republicanos estão profundamente céticos em relação aos efeitos do estilo interiorano de Walz sobre os eleitores rurais. “Não há nenhuma maneira no mundo, apesar da suposta afinidade de Walz com os eleitores brancos operários, de que ele vá atraí-los”, disse Whit Ayres, consultor político republicano e pesquisador. “Eles são ‘trumpies’.”

Enquanto os democratas abraçaram Walz com entusiasmo, os republicanos também comemoraram, convencidos de que Harris cometeu um grave erro tático ao ignorar Josh Shapiro, o popular governador do estado indeciso da Pensilvânia. “Ela tinha uma escolha certa e óbvia se quisesse derrotar Donald Trump, mas foi na direção oposta”, conjectura Ayres. “Poderia ter jogado um osso para os eleitores republicanos céticos de Trump e ­pró-Nikki Haley, mas se recusou a fazer isso.”

Para os republicanos, a “lua de mel” de Harris com o eleitorado será curta

Amanda Stewart Sprowls, antiga eleitora republicana de Tempe, no Arizona, que apoiou Haley nas primárias e não votará em Trump em novembro, esperava que Harris escolhesse Shapiro. Com Walz na chapa, ela não tem certeza do que fará em novembro. “Seus eleitores mais informados nos subúrbios estão um pouco chocados e decepcionados.”

Walz foi forçado a abordar o escrutínio sobre como ele apresentou seu serviço militar, enquanto Harris sofre pressão para permitir um questionamento mais extenso de seu histórico e sua agenda. Dois eventos foram interrompidos por ativistas que protestaram contra a forma como Biden lidou com o conflito ­Israel-Gaza. Em Detroit, Harris afirmou o direito de protestarem, mas quando os gritos não pararam, respondeu secamente: “Se vocês querem que Donald Trump vença, digam isso. Caso contrário, eu falo”. Em Phoenix, ela tentou uma abordagem diferente: “Fui clara: está na hora de fechar um acordo de cessar-fogo e levar os reféns para casa”. Em Michigan, encontrou-se brevemente com os líderes da campanha “não comprometida”, movimento antiguerra que pode ser influente no estado, que disseram numa declaração posterior que “viram esperança” na disposição da vice a abrir um diálogo com eles.

De seu resort em Mar-a-Lago, Donald Trump tentou atrair a atenção nacional que lhe escapou desde a escolha da vice-presidente, fenômeno que o principal pesquisador de Trump chamou de “Lua de Mel de Harris” e previu vida curta. Em uma coletiva de imprensa desconexa que durou uma hora, Trump atacou sua nova rival, chamando Harris de “pouco competente” em meio a uma ladainha de alegações absurdas e falsidades descaradas. O ex-presidente também descartou perguntas sobre sua marca relativamente leve na campanha como “idiota”.

Houve, porém, um acontecimento potencialmente significativo: Trump comprometeu-se a participar de um debate presidencial com Harris em 10 de setembro. Em uma breve conversa com repórteres, Harris confirmou sua participação no debate da ABC e disse que ficará “feliz” em discutir outras questões levantadas por Trump.

À espera. Os eleitores pró-Palestina cobram de Harris uma condenação clara do massacre em Gaza – Imagem: Jim Vondruska/AFP

Enquanto isso, o companheiro de chapa de Trump, o senador de Ohio J.D. Vance, foi despachado para acompanhar a turnê Harris-Walz com uma série de eventos concorrentes perto das escalas deles. Os candidatos quase se cruzaram quando o avião do senador pousou na mesma pista em Wisconsin que o Air Force 2. Vance, ladeado por funcionários e assessores, aproximou-se do avião de Harris momentos depois que ela saiu com sua comitiva. “Eu só queria dar uma olhada no meu futuro avião”, disse a um grupo de repórteres reunidos. Também provocou Harris por ainda não ter dado uma entrevista coletiva ou se sentado para uma entrevista sem roteiro, enquanto giram perguntas acerca de suas ideias sobre a economia, a fronteira EUA-México e a política externa.

Em breves conversas com a imprensa, Harris disse a repórteres que divulgaria uma plataforma política em breve e agendaria uma entrevista até o fim do mês. Em um evento em Detroit, Vance descartou a ideia de que a empolgação em torno da campanha de Harris teria efeitos eleitorais. “Acho que a maioria em nosso país pode ser despreocupada às vezes, pode gostar de coisas às vezes”, afirmou, “e pode ligar a tevê e reconhecer que o que está acontecendo neste país é uma vergonha.”

Na reta final para a eleição, os democratas esperam que sua mensagem de ânimo sirva como antídoto para os temas mais sombrios que movem a campanha de Trump. O ex-presidente, que abriu seu primeiro mandato com uma representação sinistra do país como “carnificina americana”, ameaçou usar um segundo mandato para buscar “retaliação” a seus inimigos políticos. “Todas as coisas que me deixam louco sobre esses caras e de todas as coisas que eles fazem de errado, a única que não vou perdoar é que eles tentaram roubar a alegria deste país”, disse Walz em Detroit. “Mas, sabem de uma coisa? Nossa próxima presidente traz alegria. Ela emana alegria.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1325 de CartaCapital, em 28 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A promotora e o caipira’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo