Política
Duelo de padrinhos
Lula e Bolsonaro medem forças nas eleições municipais, vistas como estratégicas para fortalecer os palanques em 2026


Em geral, campanhas eleitorais municipais privilegiam o debate sobre questões concretas locais em detrimento da discussão sobre temas mais ideológicos e nacionais, reservados às disputas para o Congresso Nacional e a Presidência da República. Convictos de que este ano será diferente, os dois principais personagens da polarização política que se instalou no Brasil desde a eleição de 2018 adotaram estratégias para marcar presença naquela que promete ser a campanha municipal mais nacionalizada desde o fim da ditadura.
À esquerda do tabuleiro de xadrez eleitoral, o presidente Lula aposta em alianças que reforcem a frente ampla em defesa da democracia, vitoriosa em 2022 e que deseja ver repetida em 2026, e percorrerá o País para dar visibilidade às principais obras e projetos de seu governo. No lado oposto, o ex-presidente Jair Bolsonaro joga suas fichas em candidaturas que aprofundem a “guerra cultural” que baliza o discurso de costumes antiesquerdista e explorem as pautas ligadas à segurança pública, tema sensível junto ao eleitorado, sobretudo nas grandes cidades.
Em reunião no sábado 10 com a presença de 160 candidatos a prefeito de diversos partidos, Lula, além de tirar fotos e gravar vídeos, comunicou a estratégia de concentrar sua presença em lugares onde haja chance mais clara de vitória. As exceções serão as cidades emblemáticas que tenham candidato do PT em busca de chegar ao segundo turno, casos, por exemplo, de Porto Alegre e Belo Horizonte. Já Bolsonaro, embora nos últimos dias venha colecionando atritos com o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, por conta de divergências na formação de palanques em alguns municípios, reiterou em reunião com a direção da legenda a meta de eleger ao menos mil prefeitos em todo o Brasil. A ideia do ex-capitão, mesmo inelegível, é marcar presença na campanha para aumentar o espectro bolsonarista, sobretudo no Nordeste, de olho nas eleições de 2026.
Janja e Michelle Bolsonaro devem marcar presença nos palanques de várias capitais
Às vezes, a presença do padrinho ajuda, noutras atrapalha. É o caso de São Paulo, onde, segundo uma pesquisa da Fundação Escola de Sociologia e Política, a associação ao nome de Bolsonaro atrapalha o candidato à reeleição Ricardo Nunes, do MDB, no provável segundo turno. O prefeito cai de 43% para 38% quando identificado como candidato bolsonarista. Já a associação com Lula favorece o candidato do PSOL, Guilherme Boulos, que cresce de 36% para 46% quando identificado como candidato do líder petista. Curiosamente, o oposto acontece no Rio de Janeiro, onde a associação com Lula, segundo uma pesquisa da Quaest, faz o prefeito Eduardo Paes, do PSD, cair de 49% para 46%. Já a associação com Bolsonaro faz o candidato Alexandre Ramagem, do PL, pular de 13% para 30% na preferência do eleitorado.
“Lula pode atrapalhar Paes em alguma medida, mas Paes é um candidato sobejamente conhecido no Rio. Não é muita gente que vai deixar de votar no Paes porque ele tem o apoio do presidente”, pondera o cientista político Cláudio Couto, professor da FGV de São Paulo. O caso de Ramagem é outro: “É um candidato muito pouco conhecido e que está lá embaixo nas pesquisas. O mero fato de ser associado a Bolsonaro faz com que eleitores bolsonaristas que não o conhecem possam manifestar intenção de voto. Não tem como ele não crescer de um patamar tão baixo”.
Já a situação de Nunes, acrescenta o especialista, é parecida com a de Paes, mas não na mesma intensidade. “O prefeito de São Paulo também já é muito conhecido, inclusive pelos eleitores bolsonaristas, mas não tem chances de se eleger no primeiro turno, como é o caso de Paes. Na etapa decisiva, o apoio do ex-presidente pode mais afugentar do que atrair eleitores.” Couto diz que é preciso ver o quanto cada candidato tem de espaço para crescer e considerar como esses apadrinhamentos podem refletir sobre eles: “E aí, claro, entram também as características de cada cidade. Bolsonaro perdeu a eleição na cidade de São Paulo. Não foi a mesma coisa no Rio de Janeiro. Há circunstâncias distintas que conferem um peso diferente nesses apadrinhamentos”.
As primeiras-damas, a atual e a ex, terão papel de destaque. Em BH, Rogério Correia, do PT, e Bruno Engler, do PL, investem na polarização. É a mesma aposta do petsita Evandro Leitão e do bolsonarista André Fernandes em Fortaleza – Imagem: Redes sociais, Redes Sociais/Partido Liberal e Ricardo Stickert/PR
Em algumas importantes capitais, Lula e Bolsonaro poderão testar de forma mais direta sua capacidade de alavancar candidaturas. Na embolada disputa na capital mineira, o PT aposta em Rogério Correia, que aparece com 7% das intenções de voto na mais recente pesquisa da Quaest, e o PL em Bruno Engler, que registra 12%. Para Correia, vincular sua candidatura a Lula tem dois objetivos essenciais: “O primeiro é demonstrar o nosso campo político, que prega desenvolvimento econômico e social, divisão de rendas, enfim, um Brasil mais justo, igualitário, democrático, humanista. O segundo é vincular as oportunidades de Belo Horizonte avançar tendo à frente um prefeito que conhece o governo e tem uma relação excelente tanto com o presidente quanto com os ministros”.
O candidato petista, que terá a companhia de Lula em um comício no pontapé inicial da campanha eleitoral, aposta no crescimento tanto da esquerda quanto da direita: “Uma grande parte do eleitorado ainda não sabe quem é o candidato do Lula, então afirmar isso permanentemente é uma estratégia que temos”. Correia avalia que a campanha eleitoral em BH terá predileção por assuntos municipais, mas não vai ignorar a polarização nacional. “Os adeptos do projeto bolsonarista já estão migrando para o candidato Engler, assim como os que têm mais afinidade com Lula estão vindo e virão cada vez mais para a minha candidatura. Grande parcela do eleitorado mobiliza-se também pelos temas nacionais, que nós não deixaremos de tratar durante a campanha municipal.”
Outra disputa direta se dará em Fortaleza, onde o candidato do PT, Evandro Leitão, que aparece com 21% das intenções de voto em uma pesquisa do RealTime Big Data divulgada na quarta-feira 14, pode enfrentar no segundo turno o candidato do PL, André Fernandes (15%), ou o também bolsonarista Capitão Wagner, do União Brasil, que registra 24%: “As eleições municipais tratam, sobretudo, de questões locais, mas isso não significa que em uma parte da população esse discurso nacionalizado da polarização não repercuta”, observa Monalisa Torres, analista política e professora da Universidade Estadual do Ceará. Algumas candidaturas estão apostando nisso: “Fernandes, que é bolsonarista, entra como um nome competitivo na disputa e tem levantado o discurso de polarização. Ataca outros candidatos, mas principalmente o candidato do PT, fazendo essa relação com Lula, levantando fortemente esse discurso mais ideologizado. O PL aposta nas eleições proporcionais com vistas a fortalecer alguns nomes para as eleições de 2026”.
Lula costura amplas alianças no campo democrático. Bolsonaro quer eleger mil prefeitos com sua “guerra cultural”
Bolsonaro, acrescenta Torres, é “um trampolim, a partir do qual Fernandes tenta alçar voos maiores” na disputa em Fortaleza. “Por isso, tem se esforçado para emular essa polarização, inclusive no embate que trava pontualmente com o outro candidato da direita, que é Capitão Wagner.” Apesar de ter um recall elevado – perdeu a última eleição para prefeito por apenas 3% dos votos no segundo turno –, Wagner enfrenta um problema que vem se tornando cada vez mais comum neste início de campanha para alguns candidatos da direita: “Ele tem sido tachado como traidor porque não incorporou todo esse viés ideológico, toda essa agenda bolsonarista que o Fernandes encarna”. Para a especialista, o Ceará é um exemplo da estratégia do PL em todo o Nordeste: “Alguns candidatos do PL têm sofrido. Os que são mais pragmáticos foram engolidos, em alguns casos, pelos ideológicos”.
O Nordeste terá atenção especial tanto de Lula quanto de Bolsonaro. A direita bolsonarista tentará crescer e se capilarizar, muitas vezes enfrentando para isso políticos tradicionais do Centrão. Já a esquerda procurará restabelecer na região o amplo domínio eleitoral do qual um dia gozou. “Bolsonaro tem obsessão pelo Nordeste, sonha em reverter o apoio massivo que Lula tem na região. Do ponto de vista ideológico, a presença dele tem o objetivo muito claro de ampliar o capital político bolsonarista na região. No caso de Lula, é reafirmar o eleitorado que o PT tem. A presença de Lula, mesmo que indireta, virá no sentido de manter e ampliar o eleitorado do Nordeste, já pensando no cenário de 2026”, avalia Luciana Santana, cientista política e professora da Universidade Federal de Alagoas.
Santana diz que a estratégia de nacionalizar as eleições municipais possivelmente será adotada nas maiores capitais nordestinas, como Fortaleza, Recife e Salvador: “Porém, acho que questões locais sempre vão sobressair. Vai depender de cada um dos cenários, de como está a situação da segurança pública em cada uma dessas capitais, se são cidades mais conservadoras ou não. No caso de Maceió, por exemplo, a força da Igreja conta muito para a estratégia bolsonarista de tentar ampliar seu eleitorado. Em outros casos, como Recife, é muito difícil essa penetração bolsonarista, mesmo que candidaturas conservadoras tentem emplacar temas nacionais”.
Para Cláudio Couto, existe uma percepção generalizada nas grandes cidades de que há um problema na área de segurança pública, e aí o bolsonarismo pode ter vantagem competitiva. “Se há uma preocupação grande com segurança em vários lugares, ainda que esse não seja um tema prioritariamente municipal, você pode ter candidatos com discursos duros nessa área, o que sempre acaba tendo um apelo demagógico forte, beneficiando os candidatos da extrema-direita. É mais difícil para a esquerda capitalizar votos quando a segurança se torna um tema muito candente.” Quanto à estratégia de Lula de divulgar as obras do governo pelo País, Couto diz que não basta: “Não é isso que vai determinar o voto do eleitor. Claro que em certos municípios pode funcionar. Em algum lugar que tenha uma grande obra federal, algo com muito impacto, aí sim pode ser um pouco mais efetiva essa estratégia”.
O petista Humberto Costa ressalta a importância de eleger vereadores. Valdemar Costa Neto coleciona atritos com o capitão – Imagem: Redes Sociais/PT na Câmara e Beto Barata/Partido Liberal
Outro trunfo de Lula e Bolsonaro será a participação, respectivamente, de Janja e Michelle Bolsonaro durante a campanha. O PL já elaborou uma agenda para que a ex-primeira-dama suba pelo menos uma vez no palanque dos principais candidatos do partido em todo o País, além de agendar a gravação de vídeos de apoio para 2 mil candidatos. Por sua vez, Janja fez chegar ao coordenador do Grupo de Trabalho Eleitoral do PT, senador Humberto Costa, sua intenção de subir nos palanques petistas, sobretudo onde forem mulheres candidatas à prefeitura, casos, por exemplo, de Maria do Rosário em Porto Alegre e de Natália Bonavides em Natal.
“É interessante notar todo esse protagonismo das primeiras-damas, porque, se olharmos para o passado, Marisa Letícia, Neuza Brizola ou mesmo Ruth Cardoso, embora notáveis, eram figuras apagadas diante de seus companheiros. Da Michelle Bolsonaro para cá, criou-se essa característica de a primeira-dama ter uma intervenção fortemente política. A resposta do campo progressista foi a Janja, que já vinha de uma militância política, coisa que não existia na Michelle”, comenta Luiz Eduardo Motta, diretor do Laboratório de Estudos sobre Estado e Ideologia da UFRJ.
Para Couto, a participação das primeiras-damas tende a ter um efeito marginal. Algumas pesquisas recentes, diz, mostram que Michelle tem um impacto maior: “Primeiro, porque sua figura foi muito mais explorada pelo bolsonarismo. Ela dirige o PL Mulher, teve quatro anos aparecendo bastante como primeira-dama, tem aquele discurso ideológico religioso muito forte”. Embora Janja não seja uma primeira-dama de perfil apagado, no caso de Michelle existe todo um trabalho de promoção até como eventual candidata à Presidência da República, avalia. “Não tem nada disso no caso da Janja, pelo menos por enquanto. Então, acredito que Michelle talvez seja uma aposta mais bem-sucedida. Claro que Janja será útil. Ela, de certa maneira, será a representante de Lula em certos eventos.”
Em recente entrevista ao jornal O Globo, Humberto Costa assegurou que o PT vai aumentar significativamente o número de prefeitos, mas não revelou qual é a meta. Em vez disso, enfatizou ter a preocupação de também ampliar a base de vereadores, até porque estudos encomendados pelo partido indicam que eles podem exercer maior influência na eleição para o Congresso Nacional daqui a dois anos. “Em 2020, elegemos 2.663 vereadores, agora temos 3.166. Vamos ampliar esse número na eleição, o que dará capilaridade ao partido para influenciar na eleição de deputado.” •
Publicado na edição n° 1324 de CartaCapital, em 21 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Duelo de padrinhos’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Em novo debate, Boulos critica candidatura de Marçal: ‘Você é o Padre Kelmon dessa eleição, uma caricatura’
Por Caio César
Pela 2ª vez, juiz manda Marçal remover vídeos com insinuações sem provas contra Boulos
Por CartaCapital