Opinião

Caminhamos bem no Brics, mas o quadro da união na América Latina é desolador

O Brasil não consegue superar nenhum dos três desafios que se interpuseram: as crises no Haiti, na Venezuela e na Nicarágua

Caminhamos bem no Brics, mas o quadro da união na América Latina é desolador
Caminhamos bem no Brics, mas o quadro da união na América Latina é desolador
Lula na foto oficial dos Brics, na África do Sul. Da esquerda para a direita: Lula (Brasil); Xi Jinping (China); Cyril Ramaphosa (África do Sul); Narendra Modi (Índia); e o representante de Putin, Sergei Lavrov (Rússia). Foto: GIANLUIGI GUERCIA / POOL / AFP
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“Não importa o que um homem queira, no crime como na virtude mais elevada, nas preocupações minúsculas ou nos grandes destinos, a essência do seu querer consiste sempre no seguinte: ele quer primeiro querer livremente” – Simone Weil

Esse pensamento remete a muitas coisas: das relações individuais, afetivas, às coletivas.

Somos seres fadados à liberdade, mas facilmente nos deixamos enredar por convenções e crenças alheias, que, na maioria das vezes, são meros pretextos de objetivos de dominação.

Tomemos um exemplo arquetípico: que dificuldade temos em buscar a integração continental, a qual, porém, deveria ser objetivo permanente do Brasil, estando prevista na própria Constituição, no parágrafo único do artigo 4o.

Todavia, preferimos jogar solo. Um engano, pois ninguém consegue projeção internacional sem diplomacia, sem a formação de blocos.

Mesmo a China, a potência econômica mais dinâmica da atualidade, não escapa à regra.

Caminhamos bem no âmbito do Brics; porém, essa mesma pertença requer a coordenação de cada membro com os respectivos vizinhos.

Entretanto, se olharmos o quadro atual da união da América Latina e do Caribe, não poderíamos ficar mais desolados.

O próprio Brasil, que por suas dimensões deveria ser um dos motores da agremiação, se comparado a um corredor de obstáculos, não consegue superar nenhum dos três desafios que se interpuseram: as crises no Haiti, na Venezuela e na Nicarágua.

No caso haitiano, foram países africanos que assumiram a liderança das forças policiais de paz, sob a liderança do Quênia, que para lá enviou mais de 1.000 efetivos.

Na Venezuela, pedimos acesso às atas da votação, mas sem que se saiba o que se fará com elas, uma vez que o continente não conta com autoridade eleitoral supranacional.

Quanto à Nicarágua, a surpresa é ainda maior, uma vez que a expulsão do embaixador brasileiro teria ocorrido pelo não-comparecimento dele nos festejos da data nacional.

Não é algo de somenos importância: o comparecer representa reconhecimento implícito da soberania do país pelo embaixador; portanto, a ausência corresponderia ao não-reconhecimento.

Trata-se, como se pode perceber, de algo grave, sendo pouco provável que ele tenha decidido se ausentar sem instruções de Brasília.

A repercussão daquele gesto – e da posterior expulsão da embaixadora da Nicarágua – terá efeitos não apenas em âmbito bilateral, mas também multilateral, na medida em que enfraquece e mina a unidade do Grupo Latino-Americano e Caribenho em todos os foros das Nações Unidas, incluindo os Organismos Internacionais Especializados.

Pior, tudo isso ocorre em momento de fortíssima ascensão da extrema-direita internacional.

Tomemos o caso do Reino Unido: atendendo ao apelo de Nigel Farange, o chefe fascista inglês, hordas de hooligans de extrema-direita depredaram albergues para imigrantes e tocaram o terror por uma semana em uma das principais economias do Ocidente.

Com efeito, a cena internacional se altera rapidamente.

Na África, antigas potências coloniais, como a França, são expulsas – bases e soldados incluídos – em benefício de novas influências, como a da Rússia, o que situa o conflito com a Ucrânia em outro patamar, bem mais internacional.

Assim, na semana passada o Mali rompeu relações com a Ucrânia, que fomentou a guerra civil no país, em prejuízo do governo central, apoiado pela Rússia.

Dessa forma, a Ucrânia parece obrigada a quitar a fatura de ator interposto do Ocidente, no conflito com a Rússia.

Na Ásia, os estudantes colocaram para correr, literalmente, a chefe de governo de Bangladesh, que tiranizava o país há mais de uma década.

O protagonismo deles foi tal que a própria polícia se retirou para a caserna, tendo os estudantes assumido, por isso, até o controle do tráfego urbano.

Finalmente, a tirana foi substituída pelo criador do microcrédito no país, o Prêmio Nobel da Paz Mohamed Yunus.

Ainda na Ásia, o principal partido de oposição, que venceu as eleições legislativas de 2023 na Tailândia, foi dissolvido, sob a alegação de crime de lesa-majestade, porque propusera reduzir a pena daquele crime de 15 para um 1 ano de prisão.

Entretanto, a força da reação popular a um ato de tal arbitrariedade por parte da Corte Suprema do país não deverá perdurar em face da rejeição da população a uma medida tão ditatorial, principalmente porque o líder da oposição, que perdeu seu mandato, parece encarnar o melhor da sociedade civil local. Pior, foi declarado inelegível até 2034.

Aliás, parece que virá da Ásia o revigoramento dos centros das nossas cidades: nos fins de semana, os únicos estabelecimentos comerciais que permanecem abertos nos centros das cidades grandes e médias brasileiras são asiáticos, de chineses ou coreanos.

A propósito, em Espera de Deus (editora Vozes), Simone Weil nota: “…destruir cidades, seja materialmente, seja moralmente, ou excluir seres humanos da cidade precipitando-os entre os dejetos sociais, é cortar todo vínculo de poesia e amor existente entre as almas humanas e o universo. É mergulhá-los à força no horror e na feiura. Não há, portanto, crime maior. Todos nós tomamos parte, por cumplicidade, em uma quantidade quase inumerável de tais crimes. Se pudéssemos compreender, todos iríamos chorar lágrimas de sangue”.

Como a lembrar a força de nossa pertença conclui: “Todo ser humano está enraizado aqui embaixo por uma certa poesia terrestre, reflexo da luz celeste, que é seu vínculo mais ou menos vagamente sentido com a sua pátria universal. A infelicidade é o desenraizamento”.

Busquemos as raízes, retomemos a etimologia da radicalidade como algo positivo, verdadeiro, necessário; não fanático, extremista ou violento; pois não há árvores, sombras ou frutos, sem suas raízes.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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