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A privatização do saneamento é um péssimo negócio para os consumidores, atestam experiências internacionais

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Subvalorizada. O governo paulista vendeu cada ação por 67 reais, enquanto os papéis eram negociados na Bolsa por um preço superior, 74,97 reais – Imagem: Sabesp/GOVSP e Mônica Andrade/GOVSP
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No fim de julho, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, bateu o martelo da privatização da Sabesp, a maior companhia de sanea­mento do Brasil e a terceira maior no mundo. A ocasião seguiu a oferta pública de 15% de ações da companhia, arrematadas, sem concorrentes, pelo consórcio liderado pela Equatorial Energia com a proposta de 67 reais por ação, um valor aproximado de 7 bilhões de reais.

No dia da transação, os papéis da ­Sabesp eram negociados na Bolsa a 74,97 reais. Apenas isso bastaria para caracterizar um grande negócio para os compradores da empresa. Contudo, uma análise mais minuciosa revela que os benefícios dessa negociação vão além das cifras imediatas, favorecendo amplamente o mercado financeiro, mas potencialmente comprometendo a qualidade dos serviços prestados aos consumidores. Esse cenário levanta sérias preocupações sobre o impacto de tais transações na sustentabilidade e na eficiência de um serviço público essencial.

A privatização da Sabesp é defendida pelo governo de São Paulo como uma forma de acelerar a universalização do saneamento. Com um valor de mercado de 50 bilhões de reais e lucro de 3,5 bilhões apenas em 2023, a empresa atende 58% dos municípios paulistas, com os melhores índices de cobertura de abastecimento de água e coleta de esgoto do País – 98% e 93%, respectivamente. Para chegar nesse patamar, a companhia manteve um programa de investimentos estável ao longo dos anos, com valores na faixa de 5 bilhões de reais anuais. Com isso, a meta de universalização dos serviços em 2033 seria alcançada sem necessidade de privatizar a empresa.

A Sabesp tinha plenas condições de universalizar seus serviços antes de ser entregue à iniciativa privada

O estudo apresentado em 2021 à Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo, a Arsesp, delineando a capacidade financeira da ­Sabesp para investir 47,5 bilhões de reais até 2030, reforça a viabilidade dessa meta. Esse planejamento financeiro demonstra que a companhia possui os recursos e a estratégia necessária para expandir e aprimorar seus serviços, garantindo que a universalização do saneamento seja atingida dentro do prazo estipulado.

O novo arranjo acionário da Sabesp, agora controlada pela Equatorial Energia, traz à tona importantes questões sobre a sustentabilidade financeira e operacional da empresa. Embora seja uma empresa com ações listadas nas Bolsas de Valores brasileira e americana, a ­Sabesp, ao longo dos anos, conseguiu equilibrar o ímpeto rentista com seu caráter público, mantendo uma política de dividendos que assegurava que parte significativa dos lucros fosse reinvestida na própria empresa para possibilitar a universalização dos serviços de saneamento. Esse equilíbrio era garantido pelo estatuto da companhia, que limitava o pagamento de dividendos ao mínimo exigido pela Lei das Estatais, de 25%. Essa abordagem permitia maiores investimentos e menor endividamento, atendendo às necessidades de expansão e melhoria dos serviços sem comprometer a saúde financeira da Sabesp.

Contudo, a recente aprovação de uma nova política de dividendos, a assegurar um pagamento escalonado de até 100% dos lucros aos acionistas até 2030, representa uma mudança significativa na estratégia da empresa. Essa decisão, tomada pelo Conselho da Sabesp às vésperas da oferta pública que concedeu o controle da companhia à Equatorial Energia, levanta preocupações sobre o impacto dessa política na capacidade da empresa de continuar investindo em infraestrutura e serviços. A nova política sinaliza uma priorização de retornos imediatos aos acionistas em detrimento de investimentos a longo prazo necessários para a universalização dos serviços de saneamento.

Nova controladora. A Equatorial Energia não tem expertise na área de saneamento – Imagem: Redes Sociais/Equatorial Energia

O Grupo Equatorial apresenta-se como uma plataforma de investimentos líder em utilities, ou seja, serviços essenciais de infraestrutura. Na sua composição acionária estão fundos de investimento, como o Capital World Investors e o ­Blackrock, assim como o fundo de pensão canadense CPPIB, já conhecidos investidores institucionais da Sabesp. A nova configuração não apenas reforça a participação de investidores estrangeiros na companhia e sua inserção nas redes financeiras globais. Ela também aprofunda a integração da Sabesp com mercados internacionais, tornando-a mais suscetível a crises econômicas globais e variações cambiais, impactando custos operacionais e capacidade de investimento.

Com um alto índice de alavancagem financeira, no último ano a Equatorial se desfez de ativos na área de energia elétrica para adequar sua “estrutura de capital a eventuais oportunidades nas avenidas de geração de valor em que atua”, sendo a operação mais recente a venda da Equatorial SPE 7, linha de transmissão localizada no Pará, dias após a aquisição das ações da Sabesp. A estratégia do Grupo Equatorial sugere que, se necessário, a longo prazo a Sabesp poderia enfrentar decisões de desinvestimento em áreas não essenciais ou menos rentáveis, visando oportunidades de mercado.

O governo britânico quer a reestatização da Thames Water, acusada de fazer despejos ilegais de esgoto e cobrar tarifas extorsivas

Em reunião com investidores, dias antes de arrematar as ações da Sabesp, a Equatorial Energia informou que pretende transformar a companhia paulista em seu “veículo exclusivo” para investimentos em saneamento. A apresentação destaca a intenção de expandir a atuação da Sabesp para outros estados e disputar licitações e concessões, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, capitalizando sobre o baixo endividamento da Sabesp para adquirir novos financiamentos e ampliar a presença da Equatorial no mercado de saneamento. Tal movimento pode desviar o foco da Sabesp de sua missão primordial de universalizar os serviços no estado de São Paulo, potencialmente sobrecarregando a empresa com novos projetos e riscos financeiros adicionais, o que poderia comprometer a sua estabilidade financeira e a eficiência operacional, afetando negativamente a qualidade do atendimento aos consumidores.

A experiência internacional mostra os riscos pertinentes a esse tipo de arranjo. A companhia de saneamento Thames ­Water, na Inglaterra, dá pistas de um futuro não tão dourado. Privatizada em 2001 com a compra das ações pela alemã RWE, em 2006 o controle da companhia passou a um consórcio de investidores liderado pela Macquarie Capital ­Funds, empresa australiana conhecida como “vampiro canguru” por suas práticas de mercado agressivas. Na última década, a Thames Water tem protagonizado escândalos de despejo ilegal de esgoto, baixa qualidade da água e aumentos expressivos das tarifas aos consumidores. Ao mesmo tempo, a companhia é uma generosa pagadora de dividendos. Apenas neste ano, os acionistas receberam o equivalente a quase 1 bilhão de reais em pagamentos.

O anúncio do valor histórico veio horas antes de a companhia solicitar um auxílio financeiro emergencial para continuar as atividades, diante de um endividamento que tem levantado dúvidas sobre a capacidade da ­Thames ­Water de seguir com as operações. Atual­mente, o governo britânico discute a renacionalização da companhia de forma emergencial, com altos custos para a administração pública.

Exemplo. Apesar da baixa qualidade dos serviços prestados, a Thames Water é generosa na distruibuição de dividendos – Imagem: Redes Sociais/Thames Water

O modelo de privatização da Sabesp em muito se assemelha ao da Thames Water, que contava com um acionista de referência pelos primeiros anos com a finalidade de garantir a operacionalidade da empresa. No modelo de governança proposto pelo governo paulista, a Equatorial, com apenas 15% das ações, terá direito a três das nove cadeiras no Conselho de Administração, com a prerrogativa de indicar também os três membros independentes, o presidente do Conselho e o CEO da empresa. Referendar as decisões pró-mercado a partir desse arranjo não parece ser um problema.

Nesse sentido, a privatização da ­Sabesp pode aumentar a pressão financeira sobre a empresa, forçando-a a ­alcançar resultados financeiros positivos a qualquer preço e, possivelmente, aumentando seu nível de endividamento. Como garantir o equilíbrio entre os interesses financeiros e públicos será o ponto crucial para assegurar que a Sabesp continue cumprindo seu papel de fornecer serviços de sanea­mento de qualidade à população, sem comprometer sua viabilidade econômica e operacional. A nova configuração acionária e a política de dividendos exigirão uma gestão extremamente cuidadosa, para evitar que o foco em rentabilidade comprometa a missão pública e os compromissos sociais da companhia. •


*Doutoranda em Geografia e mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade de Cambridge, no Reino Unido, onde pesquisa a financeirização da água e do saneamento básico no Brasil.

Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pelo cano’

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