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Barril de pólvora
O líder do Hamas está morto, o Irã jura vingança: ainda é possível impedir a escalada da guerra no Oriente Médio?


Se o presidente recém-eleito do Irã, Masoud Pezeshkian, esperava um período de lua de mel, deve estar decepcionado. Menos de 12 horas após sua posse, uma explosão, supostamente causada por uma bomba controlada a distância, abalou um complexo da Guarda Revolucionária Islâmica no centro da capital, Teerã. O alvo era Ismail Haniyeh, líder político do Hamas, convidado para a posse de Pezeshkian e um dos homens mais procurados do Oriente Médio. A bomba, colocada embaixo da cama, matou Haniyeh instantaneamente.
Pezeshkian foi o vencedor de surpresa na eleição presidencial do mês passado. Superando um linha-dura conservador preferido pelo aiatolá Ali Khamenei, o líder supremo do Irã, ele prometeu reparar os laços desgastados com os EUA e a Europa. Muitos esperavam que sua vitória anunciasse uma era mais aberta e progressista, capaz de amenizar as tensões sociais. O assassinato de Haniyeh, atribuído a Israel e não desmentido por Tel-Aviv, remexeu todas essas esperanças. Pezeshkian está no olho de uma tempestade internacional que, segundo analistas, poderá levar a uma guerra total envolvendo o Oriente Médio.
Enfurecido pelo ataque audacioso que o humilhou, Khamenei teria ordenado preparativos para retaliação militar direta contra Israel. Vingar a morte de Haniyeh era “nosso dever”, disse a autoridade máxima do país. Pezeshkian não teve escolha a não ser acatar docilmente.
O Oriente Médio muitas vezes cambaleou à beira da catástrofe nos meses tensos desde os ataques do Hamas em 7 de outubro, lançados de Gaza contra Israel, que mataram cerca de 1,2 mil pessoas. Em abril, depois que Israel assassinou os principais comandantes da Guarda Revolucionária no consulado iraniano em Damasco, o Irã disparou centenas de mísseis e drones em seu primeiro ataque direto a Israel desde a revolução de 1979. Uma coalizão internacional improvisada, composta de forças aéreas dos EUA, Reino Unido, França, Arábia Saudita e Jordânia, ajudou Israel a interceptar e destruir a maioria dos projéteis, mas foi por pouco.
O assassinato de Haniyeh frustrou as esperanças de um cessar-fogo em Gaza e ameaça espalhar o conflito por toda a região
Reportagens na mídia norte-americana sugerem que o Pentágono está correndo para montar uma operação multinacional semelhante, mas alguns países talvez não concordem em participar novamente. Essa aparente relutância reflete uma raiva profunda do governo de Israel e seu primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, cujo assassinato não assumido de Haniyeh, juntamente com o de um alto comandante do Hezbollah em Beirute na semana passada, é amplamente visto como imprudente e provocativo.
O próximo passo do Irã poderá ser decisivo para determinar se o Oriente Médio mergulhará no caos. Sua emergência gradual como potência predominante da região se acelerou no rastro dos ataques de 7 de outubro. O “eixo de resistência” anti-israelense e antiamericano do Irã, abraçando grupos islâmicos militantes do Líbano, Síria, Iraque e Iêmen, e cada vez mais abertamente apoiado pela China e a Rússia, é agora uma grande força a desafiar a ordem estabelecida liderada pelo Ocidente.
Dois outros fatos interligados estão levando o Oriente Médio na direção do precipício. Um deles são as medidas autodestrutivas e sem precedentes da coalizão governamental agressivamente de direita de Israel, a incluir judeus ultrarreligiosos fanáticos e nacionalistas radicais. A expansão de assentamentos na Cisjordânia, a anexação territorial de fato e a violência descontrolada dos colonos antiárabes nos territórios ocupados prosseguiram em paralelo com o conflito em Gaza. A morte de mais de 39 mil palestinos, na maioria civis, alienou apoiadores tradicionais no Ocidente e indignou o mundo muçulmano. Em tribunais internacionais, Israel é acusado de genocídio e seus líderes, de crimes de guerra. Essa lamentável descida ao papel de pária global parece, porém, apenas incitar Netanyahu e seus aliados a demonstrações cada vez maiores de desafio.
Ameaça. Os houthis conseguiram atingir apartamentos em Tel-Aviv com drones – Imagem: Abdallah Adel/AFP
Essa atitude foi exibida em Washington no mês passado, onde Netanyahu fez um discurso francamente belicoso ao Congresso. Ele também fez questão de se encontrar com Donald Trump, de mentalidade semelhante. Seu comportamento recalcitrante também expõe o declínio do poder e da influência dos EUA na região.
Joe Biden chegou à Casa Branca em 2021, esperando ressuscitar um acordo nuclear com o Irã. Por outro lado, estava decidido a congelar a questão palestina. China e Rússia eram suas principais prioridades externas. Aconteceu exatamente o oposto. Khamenei e o falecido ex-presidente iraniano Ebrahim Raisi bloquearam um diálogo nuclear significativo. As atrocidades do Hamas forçaram Biden a se envolver na questão Israel-Palestina. Na verdade, ele deu carta branca a Netanyahu em Gaza. Um erro terrível ainda não corrigido. Em consequência, a posição dos EUA na região, já prejudicada pelos desastres no Iraque, Afeganistão, Síria, Somália e Líbia, despencou ainda mais.
Agora, traumatizados e inflamados por Gaza, paralisados e encurralados pelo confronto Irã-Israel, o Oriente Médio e seus muitos protagonistas fortemente armados aproximam-se inexoravelmente da guerra em grande escala que todos eles afirmam não querer.
Hezbollah
O Hezbollah no Líbano, uma organização política e militar xiita patrocinada pelo Irã, é supostamente o ator não estatal mais poderoso do mundo. Israel estima que o grupo tenha cerca de 45 mil combatentes e até 150 mil mísseis, além de inúmeros drones. Especialistas dizem que o Hezbollah poderia disparar entre 2,5 mil e 4 mil mísseis por dia contra qualquer ponto de Israel durante três semanas – e potencialmente sobrecarregar o Domo de Ferro, sistema de defesa aérea de Israel.
O Irã tem relutado até agora em comprometer o Hezbollah com uma ofensiva em larga escala, considerando-o principalmente uma defesa avançada contra Israel. Embora tenha havido trocas regulares de tiros transfronteiriços desde 7 de outubro, Hassan Nasrallah, o chefe do Hezbollah que responde a Khamenei, não ofereceu ao Hamas apoio total e ativo. Esse cálculo pode mudar após o assassinato, confirmado por Israel na semana passada, de Fuad Shukr, principal comandante militar do grupo.
Joe Biden deu carta branca a Benjamin Netanyahu em Gaza. Um erro terrível, ainda não corrigido
Iraque
O país assumiu uma posição intransigente sobre o conflito de Gaza desde o início, condenando a invasão de Israel e recusando-se a criticar o Hamas. Isso reflete o apoio histórico do país à causa palestina.
O Iraque abriga milícias islâmicas aliadas ao Irã que têm repetidamente atacado forças dos EUA lá e na Síria. Após ao menos 165 ataques de milícias desde 7 de outubro, Biden ordenou ataques aéreos em fevereiro para vingar três soldados norte-americanos mortos na Jordânia.
Os temores de que uma guerra em toda a região pudesse atrair esses militantes iraquianos, além de grupos semelhantes da Síria, foram reforçados por três ataques às forças dos EUA nos últimos dias. Em resposta, Washington lançou ataques aéreos ao sul de Bagdá no fim de julho. Cerca de 2,5 mil soldados estadunidenses permanecem no Iraque e outros 900 na Síria, designados para contraterrorismo.
Houthis
Os houthis no Iêmen são uma milícia xiita fundamentalista aliada e armada pelo Irã, que se opõe fervorosamente à existência do Estado de Israel. Após a invasão de Gaza, eles começaram a disparar mísseis contra navios comerciais no Mar Vermelho ligados a Israel e aliados próximos. Isso levou a uma resposta militar ocidental, incluindo o bombardeio de locais de lançamento dos mísseis. A ameaça Houthi aumentou dramaticamente no mês passado, quando conseguiu atingir um prédio de apartamentos em Tel-Aviv com um drone. Israel lançou ataques aéreos retaliatórios punitivos ao porto de Hodeidah.
As forças houthis também entraram em choque com a Arábia Saudita, aliada dos EUA, na guerra civil do Iêmen, e recentemente atingiram funcionários da ONU. Estão prontos para um conflito com Israel.
EUA e Europa
Podem ser rapidamente arrastados para uma guerra em larga escala no Oriente Médio. Washington mantém grandes bases aéreas e navais no Golfo Pérsico e pode fazer novas “mobilizações defensivas” na região. As autoridades norte-americanas supostamente preveem um ataque iraniano maior que o de abril, incluindo a ativação de forças terceirizadas no Iraque, Síria e Líbano. Mas a influência dos EUA está reduzida. Netanyahu não avisou Washington sobre a operação Haniyeh. Biden reclamou, corretamente, mas sem ênfase, que isso “não ajudava” as negociações de cessar-fogo em Gaza.
Biden não desistiu de seu plano de uma grande barganha ligando um cessar-fogo em Gaza a discussões israelenses com a Autoridade Palestina sobre uma solução de dois estados, com garantias de segurança regional dos EUA. Tal acordo teria como objetivo desarmar a bomba-relógio que é a Palestina e enfraquecer o Irã. Neste momento, parece um sonho impossível.
Lances. Os EUA perderam influência na região. Erdogan sobe o tom contra Israel – Imagem: Dimitrius Papamitsos/Governo da Grécia e Embaixada dos EUA/Israel
Catar e Egito
As nações árabes desempenharam papéis centrais nos esforços para mediar uma interrupção do massacre em Gaza. Ambos expressaram consternação com os acontecimentos da semana passada. Referindo-se ao assassinato de Ismail Haniyeh, o primeiro-ministro do Catar, xeque Mohammed bin Abdulrahman al-Thani, escreveu no X: “Assassinatos políticos e ataques constantes a civis em Gaza enquanto as negociações continuam nos levam a perguntar: como a mediação pode ter sucesso quando uma parte assassina o negociador do outro lado?” Alertando que “a paz precisa de parceiros sérios”, ele parecia pronto para desistir.
O Egito acusou abertamente o governo israelense de sabotar a paz. “A coincidência dessa escalada regional com o impasse nas negociações de cessar-fogo em Gaza aumenta a complexidade da situação e indica a falta de vontade política israelense para atenuá-la”, declarou o Ministério das Relações Exteriores do Cairo.
Turquia
O presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, surpreendeu Israel com uma ameaça explícita de invadir o país em apoio aos palestinos. “Assim como entramos em Karabakh (no Azerbaijão), assim como entramos na Líbia, faremos algo exatamente semelhante a eles (Israel)”, disse Erdogan, referindo-se a intervenções militares turcas anteriores. Furioso, o ministro das Relações Exteriores de Israel, Israel Katz, comparou Erdogan a Saddam Hussein. A Turquia respondeu que o “genocida Netanyahu” é um segundo Adolf Hitler que teria o mesmo destino do líder nazista.
Deixando de lado as comunicações diplomáticas pouco maduras, a guerra entre a Turquia, integrante da Otan, e Israel parece improvável neste momento. Mas a briga aumentou a sensação de desintegração regional. Erdogan é defensor declarado do Hamas e se autointitula um líder do mundo muçulmano. Ele também está atualmente consertando as relações com o presidente da Síria, Bashar al-Assad, alinhado ao Irã. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Barril de pólvora’
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