

Opinião
Drogas ao mar
Quem pode não se surpreender diante da pesquisa que detectou a presença de cocaína nos tubarões da costa do Rio de Janeiro?


Na década de 1980, um surpreendente estudo inglês mostrou que peixes machos de muitos rios da Inglaterra, próximos às grandes cidades, estavam se feminilizando, inclusive produzindo proteínas que são geradas apenas por fêmeas da mesma espécie e desenvolvendo características intersexuais, que culminavam até com a produção de óvulos.
Em 2012, um novo estudo continuava observando as mesmas ocorrências. Os cientistas constataram que os peixes dos rios britânicos estavam expostos a altas quantidades de hormônios femininos.
Além dos peixes, a população que bebia a água tratada das torneiras londrinas estava também exposta a altas doses de estrógenos, sendo detectado impacto até na produção de espermatozoides.
Em trabalhos mais recentes, os níveis de estrógeno nas águas, embora menores, ainda preocupam os cientistas. De onde vêm esses hormônios?
O esgoto tratado e despejado nos rios carrega uma infinidade de drogas consumidas pela população, que são excretadas na urina e nas fezes. Entre essas substâncias encontram-se os estrógenos presentes, principalmente, nos anticoncepcionais.
Na mesma linha de pensamento, pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto detectaram, em 2019, a presença de altos níveis de carbamazepina – um medicamento utilizado contra epilepsia e dores neuropáticas – na água dos rios da região.
Outras substâncias encontradas em níveis consideráveis foram alguns ansiolíticos e antidepressivos, como o clonazepam e a fluoxetina.
O estudo também avaliou os peixes expostos a estas águas e os principais efeitos observados foram alterações de comportamento, além de alterações na resposta imune e malformação dos embriões.
Quem não se surpreendeu com a pesquisa recente feita nos tubarões da costa do Rio de Janeiro que detectou altíssimas quantidades de cocaína nos músculos e no fígado desses animais? Trata-se de um fato espantoso em um país onde o consumo de drogas é proibido.
No caso da cocaína, foram apontadas três possíveis fontes de liberação da droga nas águas. A maior delas são as fezes e a urina de usuários nos esgotos despejados nos rios. Além dessa fonte, laboratórios clandestinos de fabricação das drogas e despejos acidentais ao carregar navios para sua exportação também foram apontados como responsáveis.
O Brasil é um grande exportador de cocaína, sendo uma conhecida rota de escoamento da droga vinda da Colômbia, Peru e Bolívia e encaminhada por via marítima para a África e a Europa.
Como os tubarões se alimentam de peixes e crustáceos e nós humanos também, provavelmente estamos sendo expostos a essa alarmante contaminação.
Depois de passar pelas redes coletoras, o esgoto sanitário é levado para as estações de tratamento, passando por diversas etapas para livrar a água de resíduos tóxicos e microrganismos.
O processo, no entanto, não é 100% eficaz e o custo de tecnologias mais eficientes para a retirada de drogas é bastante elevado. Há que se lembrar também da grande quantidade de esgoto sem tratamento despejado nos rios do nosso país. E que saneamento básico é uma questão de sobrevivência para todos. •
Publicado na edição n° 1323 de CartaCapital, em 14 de agosto de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Drogas ao mar’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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