Opinião

Malcolm X, James Baldwin e a luta contemporânea

É necessário colocar a justiça acima de considerações táticas, passageiras, e orientar a política de um país para além de qualquer aliança ou pertença

Malcolm X, James Baldwin e a luta contemporânea
Malcolm X, James Baldwin e a luta contemporânea
Nicolás Maduro comemora entre apoiadores após os resultados das eleições presidenciais em Caracas. Uma oposição e vizinhos regionais importantes rejeitaram imediatamente os resultados oficiais. (Foto: Yuri CORTEZ / AFP)
Apoie Siga-nos no

“Jamais esquecerei Malcolm e o menino, um diante do outro, e sua extraordinária gentileza: ele foi uma das pessoas mais gentis que conheci na vida”,
James Baldwin

Tanto Malcolm X quanto James Baldwin estão entre os maiores revolucionários do século XX, ambos estadunidenses e alvos de cruel oposição em seu próprio país. A tal ponto, que Malcolm terminaria assassinado (a chamada “solução americana “, no país que se quer pátria da liberdade). Durante suas vidas, eles foram os melhores amigos.

Malcolm foi fundamental para a verdadeira libertação dos afrodescendentes, por todo lado oprimidos, nos EUA, como aqui, embora responsáveis pela construção de ambos os países.

Baldwin, com sua literatura, libertou gays em todo o mundo, sendo seu romance O Quarto de Giovanni um marco da heróica e sangrenta luta (principalmente no Brasil, o país que mais assassina LGBTs) para a conquista de uma vida livre de preconceitos e segregação.

Para povos e populações oprimidas, a semana que passou foi importante por ver a candidatura de Kamala Harris se fortalecer nos EUA.

Filha do primeiro negro professor de economia da prestigiosa universidade de Stanford e de uma médica oncologista de origem indiana, Kamala terá memória do que é pertencer a uma etnia oprimida, em um país violento.

Nós, povos do Sul, temos uma ideia clara do que seja isso. Somos constantemente acossados pelo imperialismo do Norte, em tentativa desesperada de nos recolonizar.

Nesse sentido, foi emblemático o episódio das eleições presidenciais venezuelanas, que ocorreram ontem, no dia 28

Os meios de desinformação europeus (inclusive os públicos) prepararam a opinião pública para o golpe de forma magistral: todos davam vantagem de mais de 20% dos votos para a oposição!

Resultado: Maduro ganhou, com diferença de aproximadamente 12%.

Pior, é o contribuinte europeu que paga para que lhe mintam e enganem, descaradamente, uma vez que lhes toca o financiamento daquelas redes públicas, manipuladas.

O Brasil cumpre seu papel, inglório, de imperialista júnior (como somos conhecidos pelos vizinhos), ainda não admitindo a vitória de Maduro antes de visualizar as atas das seções eleitorais.

Em estrito respeito da regra pétrea da reciprocidade diplomática, imagino que a Venezuela agirá da mesma forma nas próximas eleições presidenciais brasileiras. Talvez, assim aprendamos a respeitar os processos eleitorais alheios (sendo o venezuelano ainda mais seguro do que o nosso, por comportar modalidade dual, eletrônica e impressa, permitindo a auditoria imediata das urnas).

Com efeito, a diplomacia não tem muitos segredos, mas algumas coisas nela podem ser fascinantes, profissão que, se bem exercida, requer coragem e tirocínio.

Vejam o que fez Putin: tão logo os resultados oficiais foram anunciados, ligou para Maduro, para o parabenizar.

Dessa forma, avançou várias casas no tabuleiro diplomático. Já o Brasil, nesse campo, paga o preço da subordinação, atrasando-se na mesma proporção da hesitação.

Em Malcolm X – uma vida de reinvenções (editora Companhia das Letras), de Manning Marable, o autor cita Malcolm a propósito das lutas de libertação do Terceiro Mundo: “A luta do Vietnã é a luta de todo o Terceiro Mundo – a luta contra o colonialismo, o neocolonialismo e o imperialismo.”

Na mesma obra, Manning recorda: “…Malcolm aproveitou a oportunidade para traçar paralelos entre o legado do domínio colonial europeu que ele vira na África e o sistema de racismo institucional nos Estados Unidos. A Argélia, sob domínio colonial francês, disse ele, ‘era um estado policial; e é isto que o Harlem é…A polícia no Harlem, sua presença é como uma força de ocupação, como um exército de ocupação.’ Também vinculou a luta dos afro-americanos às revoluções chinesa e cubana. ‘O povo da China cansou-se dos opressores e…se insurgiu. E não se insurgiu de modo violento. Quando Castro estava nas montanhas em Cuba, dissseram-lhe que não tinha chance. Hoje ele está sentado em Havana, e esse país, com todo o poder que tem, não consegue tirá-lo de lá.”

Muitas vezes, colocar a justiça acima de considerações táticas, passageiras, deve orientar a política de um país, mais do que qualquer aliança ou pertença.

Ainda naquela obra, Marable cita o candidato à presidência, republicano, Barry Goldwater, em 1964: “…o extremismo em defesa da liberdade não é vício, e a moderação na busca de justiça não é virtude.”

Um tal radicalismo pode custar a vida, como acontecera com o próprio Cristo.

Assim aconteceu com o jovem primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba, como Manning também relembra: “Na alvorada da independência na África pós-colonial, o primeiro-ministro do Congo, Patrice Lumumba, tornou-se símbolo das aspirações africanas pós-coloniais. Ele não reconhecia qualquer dívida com as potências coloniais do Ocidente ou com os Estados Unidos. Em 17 de janeiro de 1961, foi assassinado por mercenários belgas na província congolesa de Katanga. A notícia atrasada da morte de Lumumba foi finalmente anunciada em 13 de fevereiro, provocando manifestações de militantes no mundo inteiro. Os soviéticos acusaram soldados da ONU alocados no Congo de não terem protegido Lumumba e exigiram a demissão do secretário-geral Dag Hammarskjöld.”

Lutar pela libertação é ainda mais difícil do que pelejar pela liberdade; pois libertação implica libertar muitos, toda uma coletividade, não apenas a si próprio.

Mas é a isso que somos chamados.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo