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A empresa e a Constituição

A barbárie na busca desmedida do lucro encontra obstáculos na nossa Carta Magna

A empresa e a Constituição
A empresa e a Constituição
Foto: Polícia Federal/Divulgação
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Recentes escândalos a envolver grandes empresas brasileiras nos levam a tecer considerações relativas às missões sociais delas esperadas. Mais especificamente, estão sob investigação da Polícia Federal, no âmbito da Operação Disclosure, fraudes bilionárias que, por meio de receitas fictícias e maquiagem de resultados, visavam garantir elevados bônus para executivos.

Ocorrências dessa natureza não são meras questões patrimoniais circunscritas ao âmbito das relações estritamente privadas. Direitos fundamentais não são construções teóricas ou simples cortesias das grandes corporações. Além disso, os impactos para fontes de emprego e renda por administrações temerárias nos levam a destacar que, ao contrário de mero voluntarismo empresarial, há um compromisso social que não pode ser esquecido.

A atividade econômica, ainda que aparente sujeitar-se meramente às regras de livre-mercado e aos interesses egoísticos da iniciativa privada, deve ater-se aos direitos fundamentais a todos garantidos pelo Direito e, em especial, por nossa Constituição. Com efeito, o Direito, em nome de determinados valores coletivos inegociáveis, é o elemento responsável pela demarcação das condições e possibilidades das relações econômicas e sociais.

Não por acaso, a ordem econômica é, dentre outros, fundada nos princípios da livre iniciativa, da propriedade privada e da concorrência. Aos referidos princípios se somam o da função social da propriedade e o da redução das desigualdades sociais. Ademais, são fundamentos da nossa República os valores sociais do trabalho, o desenvolvimento, a erradicação da pobreza e da marginalização e, ainda, a redução das desigualdades. Portanto, a projeção da liberdade individual no plano da produção e de apropriação privada não é incondicionada. É teleologicamente instrumentalizada. As empresas não podem constituir-se em instrumentos do capitalismo selvagem. A barbárie na busca desmedida do lucro encontra obstáculos na nossa Constituição. O compromisso corporativo com a ética nas relações com parceiros, investidores, colaboradores e consumidores é peça-chave para o desenvolvimento social e econômico.

Destaque-se, exemplificativamente, ser obrigação das empresas de capital aberto revelar, de forma contínua e independentemente de provocação, o estado dos seus negócios, isso em nome da própria estabilidade do mercado brasileiro de capitais. O dever de transparência visa assegurar, por meio da publicidade, que informações cheguem aos acionistas e ao mercado em geral, para que eles possam avaliar as condições dos negócios da companhia e deliberar, em circunstâncias adequadas, entre alocar ou realocar recursos.

Outro aspecto que se coloca é que não se sujeita a qualquer voluntarismo empresarial o dever de inclusão e diversidade, a vedação à exploração do trabalho escravo e, ainda, a proteção ao mercado de trabalho das pessoas com deficiência e da mulher. O compromisso social das empresas brasileiras com os direitos fundamentais é inegociável. Trata-se da chamada eficácia dos direitos fundamentais entre terceiros ou, mais adequadamente, da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Devem ser reprimidos atos empresariais que, em busca do lucro desmedido, afrontam a dignidade dos trabalhadores e o pacto social. Os direitos fundamentais e sociais, amplamente reconhecidos pelo Direito internacional e pela legislação brasileira, constitucional e infraconstitucional, pressupõem equidade e dignidade nas suas acepções plenas, não se constituindo uma faculdade das companhias brasileiras.

Outro aspecto que se coloca é que os direitos fundamentais previstos na Constituição não devem ser assegurados apenas pelos poderes públicos, mas igualmente pelas empresas. Trata-se da chamada eficácia dos direitos fundamentais entre terceiros ou, mais adequadamente, da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas.

O compromisso social das empresas brasileiras decorre de uma exigência constitucional inegociável. Para além da mera voluntariedade, é preciso que o ambiente de produção e de inovação se compatibilize com as exigências coletivas asseguradoras, entre outros, do pleno emprego e da dignidade do trabalhador. Do contrário, estaremos fadados à barbárie.

A regulação da atividade econômica não deve ser substitutiva do mercado, que possui garantia constitucional contra a intervenção estatal. De todo modo, a Constituição supervisiona a ordem econômica, preservados o campo privado de inovação e a circulação de riquezas. É essa a desejável relação entre a empresa e a Constituição. •

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A empresa e a Constituição’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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