

Opinião
Justiça climática e garantia de direitos para comunidades tradicionais
Em uma democracia plena, precisamos que a Justiça promova a equidade e proteja os direitos dos mais vulneráveis


À frente do Ministério do Meio Ambiente, a ministra Marina Silva sugeriu recentemente a criação de um instrumento jurídico que permita a decretação antecipada de emergência climática em municípios sob risco. Seria uma maneira de acelerar e facilitar a atuação governamental em casos como as enchentes do Rio Grande do Sul, as secas no Amazonas ou os incêndios na região do Pantanal. Não há mais como negar que a situação do clima se agrava no mundo todo e os países precisam criar mecanismos e políticas para proteger as populações afetadas em seus direitos mais fundamentais.
Assumir responsabilidade e adotar medidas concretas para enfrentar a crise climática, reconhecendo e valorizando o papel crucial das comunidades tradicionais na preservação ambiental, deve ser uma prioridade de todas as instâncias de poder do país, incluindo o Judiciário.
O conceito de justiça climática é recente e ainda não amplamente assimilado, mas deve caminhar junto de qualquer debate relevante sobre as questões ambientais. Em face de grandes desastres, como enchentes, desabamentos, secas severas ou incêndios florestais cada vez mais frequentes, não é difícil perceber os impactos sociais e econômicos para as regiões afetadas.
Nas últimas décadas, partidos e organizações progressistas que lutam pelo meio ambiente alertaram repetidamente sobre os perigos da mudança climática e a necessidade urgente de políticas ambientais robustas. Esses alertas foram frequentemente minimizados sob a justificativa de que o desenvolvimento econômico de curto prazo deveria ser priorizado.
As comunidades remanescentes de quilombos estão entre os territórios mais bem preservados no País
Diversas são as áreas afetadas pelo agravamento dos eventos climáticos extremos, em uma equação na qual todos perdem. Vidas perdidas, pessoas deslocadas, casas e biomas destruídos, bens, memórias e ecossistemas que não poderão ser recuperados. Comércio fechado, indústrias paradas, safras inutilizadas, turismo suspenso.
Há, no entanto, uma parcela social que perde ainda mais: as comunidades tradicionais e povos originários. São essas populações, já vulnerabilizadas em tantos sentidos, as mais afetadas pelos efeitos da mudança climática global, ainda que sejam elas as que menos contribuem para o aumento dessas alterações.
É a partir dessa perspectiva que a justiça climática atua. O termo surgiu no âmbito das discussões sobre justiça ambiental, justamente diante da percepção de que os efeitos da emergência do clima afetam desproporcionalmente determinados grupos sociais. É uma área judicial que se propõe a trabalhar pela garantia dos processos de titulação e dos procedimentos de consulta pública às comunidades, assim como pela mitigação das inúmeras violações às quais elas estão frequentemente submetidas, como a falta de acesso à saúde, educação, água, segurança alimentar, conectividade e o assassinato sistemático de lideranças.
O Brasil perdeu 96 milhões de hectares de vegetação nativa nos últimos 37 anos, como demonstram estudos do MapBiomas, projeto colaborativo vinculado ao Observatório do Clima. No entanto, as comunidades remanescentes de quilombos (CRQ) estão entre os territórios mais bem preservados no país, com impacto que equivale somente a 0,05% da área total desmatada em 2022 e os territórios indígenas, que comportam mais de 19% de toda a vegetação nativa existente atualmente, representam apenas 1% dessa perda total.
Esses territórios que, na prática, ajudam a preservar o meio ambiente e os biomas nos quais estão inseridos, acabam esmagados por conflitos territoriais, assédio de grandes corporações e construção de novos empreendimentos urbanos. O Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2022 mostra que apenas 4,3% da população quilombola do Brasil reside em territórios oficialmente demarcados e titulados, enquanto 95,67% dessas pessoas ainda não obtiveram a titulação de seus territórios, mesmo que esse direito esteja previsto no artigo 68 do Ato de Disposições Transitórias (ADCT).
Acreditando na urgência do debate social sobre justiça climática, a Rede Liberdade elaborou o “Relatório sobre Justiça Climática e Violações Socioambientais Quilombolas”, dossiê que apresenta um panorama dos principais fatores e ações que podem nortear a formulação de políticas públicas eficazes, que levem em conta os aspectos interculturais e o respeito aos modos de vida das muitas comunidades tradicionais que compõem a nação brasileira. Em uma democracia plena, é dever da justiça promover a equidade e a proteção dos direitos dos mais vulneráveis.
Em uma democracia plena, precisamos que a Justiça promova a equidade e proteja os direitos dos mais vulneráveis. É fundamental que políticas públicas considerem os aspectos interculturais e garantam o respeito e a preservação dos modos de vida das comunidades tradicionais. A justiça climática não pode mais ser uma pauta ignorada, ela deve ser central em todas as discussões sobre o futuro do nosso país.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.
Leia também

A crise climática piora
Por Aldo Fornazieri
Centro gestor alerta para seca severa este ano na Amazônia
Por Agência Brasil
Até onde vai a responsabilidade de um país pela crise climática?
Por Agência Pública