

Opinião
A PEC das Drogas e o dia do enforcamento
Não adianta punir a qualquer custo. A legislação, assim como o cidadão, precisa de dignidade


Aos fatos: a PEC 45, também conhecida como PEC das Drogas, propõe alterar o art. 5º da Constituição para prever como mandado de criminalização a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins, independentemente da quantidade. Essa proposta, sob uma análise jurídica, representa um retrocesso no âmbito penal e na política de drogas no Brasil. Ainda em curso, esse retrocesso que pode ser constado como um backlash do nosso Congresso. No mesmo dia em que o STF formou um placar de 8 a 3 para descriminalizar o porte de maconha, o Congresso oficializou a criação de uma comissão especial que irá analisar a referida PEC. Neste texto, argumentarei alguns dos incontáveis pontos negativos dessa proposta.
A começar pelo princípio, é importante compreender que a nossa Constituição foi um verdadeiro marco da transição democrática, um símbolo de direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, o art. 5º é a espinha dorsal dessas garantias. E qualquer tentativa de o alterar deve ser tratada com cautela. Mas, o que vemos? Uma proposta que vai na contramão do que temos de mais avançado em termos de política de drogas.
Historicamente, a guerra às drogas tem sido um desastre. A criminalização excessiva não conseguiu diminuir o consumo ou o tráfico. Apenas encheu nossas prisões de jovens, pobres e, majoritariamente, negros. Um verdadeiro apartheid social disfarçado de política de segurança. Países mundo afora têm reconhecido isso e mudado suas abordagens, focando na saúde pública e na redução de danos. Mas, no Brasil, preferimos o caminho inverso: mais repressão, mais encarceramento e mais exclusão.
A PEC é um exemplo claro dessa mentalidade. Inserir um mandado de criminalização explícito na Constituição é uma ruptura com os princípios do direito penal contemporâneo, que vê a criminalização como último recurso, não como primeiro.
A ideia de supremacia constitucional, outro pilar do Direito contemporâneo, exige que as medidas adotadas pelo Estado sejam coerentes para com a principiologia constitucional, bem como com a sua tradição. Criminalizar a posse e o porte de drogas, independentemente da quantidade, falha em todos esses critérios. Tratar usuários como traficantes é inadequado, desnecessário e desproporcional. Os danos sociais e individuais de tal criminalização são imensuráveis.
A aplicação rigorosa das leis de drogas tem um impacto desproporcional sobre populações vulneráveis. Estudos mostram que jovens, pobres e negros são os mais afetados. A PEC exacerbará essa desigualdade, perpetuando um sistema penal seletivo. Em vez de enfrentar as causas profundas do tráfico e do uso de drogas, preferimos jogar mais lenha na fogueira da exclusão social.
Mais: nosso sistema penitenciário já está em colapso, operando muito além de sua capacidade. A PEC, com sua criminalização irrestrita, só aumentará a superlotação. Ignora-se a situação precária das prisões brasileiras, onde as condições são degradantes e a ressocialização é um mito. O Brasil, ao insistir nessa abordagem, insiste em errar. Precisamos de soluções baseadas em evidências científicas, não em pânicos morais.
Uma alternativa sensata seria a descriminalização da posse e do porte de pequenas quantidades de drogas para uso pessoal, acompanhada de políticas de regulação e controle. Isso permitiria que os recursos fossem direcionados para tratamento e prevenção, não para o encarceramento em massa. Drogas são uma questão de saúde pública, não de criminalidade. Países como Portugal adotaram essa abordagem e obtiveram bons resultados.
Ao fim e ao cabo, defendo que a PEC deve ser rejeitada com veemência. Como sempre defendi, o Direito deve ser instrumento de emancipação e justiça, não de opressão e desigualdade. Essa proposta vai na contramão desses princípios e, portanto, merece ser arquivada e sepultada. Porque, no final das contas, o que está em jogo é a nossa própria humanidade.
Por fim, lembro que, no século XVIII, a Inglaterra transformou o crime de furto em delito de morte. Prenderam os quatro primeiros batedores de carteira e fizeram um enforcamento público, para dar exemplo à malta criminosa. Na hora do enforcamento, a cidade parou. Isso, porque todos foram ver o espetáculo. Não obstante, não é que esse dia foi marcado como o dia em que mais se bateu carteiras na cidade? Moral da história: não adianta punir a qualquer custo. A legislação, assim como o cidadão, precisa de dignidade.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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