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Esquerda unida

Será a Nova Frente Popular capaz de conter o avanço da extrema-direita?

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Arena. Mélenchon foi aconselhado a ficar quieto. Macron anuncia o apocalipse. Le Pen, o real apocalipse, espera – Imagem: Bertrand Guay/AFP, Redes sociais e Sylvain Thomas/AFP
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Na memória histórica de um dos períodos mais favoráveis aos citoyens assenta-se a esperança de virada da esquerda francesa nas eleições legislativas do domingo 30. Em 1936, uma inédita aliança de socialistas, radicais e comunistas, batizada de Frente Popular, derrotou a direita e conduziu o ­país à modernidade. Léon Blum tornou-se o primeiro judeu socialista a ocupar o cargo de premier e havia três mulheres no ministério. O mandato garantiu o direito à sindicalização, 15% de reajuste salarial, jornada de trabalho de 40 horas semanais, a inserção feminina no mercado e a educação obrigatória até os 14 anos de idade, entre outros avanços sociais. Quase 90 anos depois, a Nova Frente Popular, que congrega todas as correntes progressistas relevantes e vai além do arranjo eleitoral de 2022, apresenta aos eleitores propostas tão ousadas quanto aquelas consumadas no programa de governo de Blum. Não por coincidência, a frente é uma reação ao mesmo perigo. Àquela altura do século passado, a “cadela do fascismo estava no cio”, como definiu ­Bertolt Brecht. Agora, voltou a estar. No próximo domingo, a segunda maior economia do continente, caso as pesquisas se confirmem, estará diante de dois cenários temerários: um vácuo de poder ou, pior, uma imprevisível coabitação entre o presidente liberal Emmanuel Macron e um primeiro-ministro de extrema-direita, provavelmente Jordan Bardella, jovem pupilo de Marine Le Pen.

Ainda assim, a esperança dos democratas e progressistas não morreu. Os últimos dias de campanha têm sido intensos e a Nova Frente Popular sonha em reduzir a diferença nas sondagens. Segundo o mais recente levantamento, a Reunião Nacional, de Le Pen, soma 36% das intenções de voto, contra 27% da NFP e 20% do Renascimento, legenda de Macron. Entre as propostas da esquerda para convencer parte dos franceses a abandonar as promessas fáceis e ilusórias do extremismo de direita estão a revogação da reforma da previdência imposta por Macron, que elevou a 64 anos a idade mínima de aposentadoria, um salário mínimo líquido de 1,6 mil euros, investimentos na recuperação dos serviços públicos, medidas consistentes de transição ecológica e o aumento da tributação dos mais ricos, a começar pela ampliação dos escalões do Imposto de Renda dos atuais 6 para 14. “A ideia da Nova Frente Popular é mais ampla do que a simples união das esquerdas”, descreve Silvia Capanema, professora da Sorbonne Paris Nord e conselheira departamental, cargo semelhante ao de vereadora, de Seine-Saint-Denis pelo “França Insubmissa”, movimento liderado por Jean-Luc Mélenchon, um dos expoentes da aliança. “Espero que ela seja central em uma retomada da esquerda no país, uma ruptura com as normas neoliberais em relação às quais o campo progressista se acomodou ao governar, o que provocou a descrença da população e o crescimento da extrema-direita.”

A aliança busca reeditar uma bem-sucedida experiência dos anos 30 do século passado

Falta, porém, uma dose de fraternité na campanha da NFP. A disputa de egos e de poder é, em certa medida, o principal obstáculo para a indicação prévia de um primeiro-ministro em caso de vitória. Há também a estratégia de evitar de antemão nomes “controversos” e concentrar os esforços na defesa das medidas que compõem o eixo do programa de governo. No primeiro debate televisivo, na terça-feira 25, a NFP foi representada pelo deputado Manuel Bompard, que enfrentou o atual premier Gabriel Attal, correligionário de Macron e candidato à reeleição, e ­Bardella. Em uma entrevista ao canal France 2, dias antes, Mélenchon, cujas propostas formam a base do programa da NFP, causou, no entanto, incômodo na aliança ao se apresentar como alternativa. “Desde o início houve um mal-entendido absoluto. E muito ciúme e muitas ambições, isso é normal. Perguntaram-me: ‘Você vai ser primeiro-ministro?’ Eu disse: ‘Não estou eliminando’. Mas não estou me impondo. Admito que talvez não esteja em má situação para exercer essa função, mas não sou candidato a nada.”

As reações não tardaram. A mais incisiva partiu do ex-presidente socialista François Hollande, que sugeriu ao aliado “ficar calado” para não incitar a “rejeição” dos moderados de tendência progressista. “Mélenchon não é o líder da Nova Frente Popular e não será primeiro-ministro”, enfatizou Marine Tondelier, representante dos ecologistas. Mélenchon é normalmente descrito como uma figura “controversa” e “radical”, apesar de sua demonização resultar menos de suas ideias e mais da forma como é retratado por grande parte da mídia e da direita. Exemplo: por criticar o massacre de Israel na Faixa de Gaza e defender a criação do Estado palestino, é acusado de antissemitismo.

Barreira. A aliança à esquerda tenta evitar que, de tanto bater, a extrema-direita fure o bloqueio e tome o poder – Imagem: Sameer Al-Doumy/AFP

Coadjuvante na eleição que tirou da aba do colete, Macron trocou uma calculada moderação pelo populismo retórico. Na segunda-feira 24, na típica lengalenga da “terceira via”, o presidente disse temer uma “guerra civil” se um dos “extremos” vier a conquistar maioria no futuro Parlamento. Embora, vez ou outra, atire para todos os lados, como na declaração anterior, o “centrista” prefere atacar a NFP e não se sente constrangido em resvalar no preconceito. Macron acusou a esquerda de propor “a abolição de todas as leis que controlam a imigração” e “coisas absurdas, como fazer uma mudança de sexo na prefeitura”, um ataque à medida que prevê a gratuidade na mudança do registro civil para transgêneros. “Ele prefere a vitória da Reunião Nacional”, afirma ­Capanema. “Provavelmente, por duas razões: sente-se melhor em duelar até 2027 com Le Pen, por saber que a esquerda vota em qualquer coisa para evitar a extrema-direita. E pelo fato de o programa da RN ser mais próximo do seu, ou seja, não mexe nas bases sociais da austeridade, do neoliberalismo etc.”

Existe uma possibilidade razoável de as eleições em dois turnos – um segundo round acontece em 7 de julho nos círculos onde candidatos não obtiverem a maioria dos votos – levarem a um impasse. Confiante em uma vantagem expressiva, Bardella tem rejeitado a hipótese de formar um governo sem a maioria absoluta no Parlamento, ao menos 289 deputados. Pelo sim, pelo não, o extremista de 28 anos, apelidado de “Mr. ­Selfie”, optou por vestir a pele de cordeiro na reta final da campanha. “Quero reconciliar os franceses e ser o primeiro-ministro de todos os franceses, sem qualquer distinção”, afirmou ao Journal du ­Dimanche. Quem se engana? Enquanto Bardella fazia o apelo à (re)união nacional, um candidato regional da legenda xenófoba e racista contratava um ­outdoor com a seguinte mensagem: Está na hora da França criar mais oportunidades para as “crianças brancas”.

Macron tornou-se coadjuvante na eleição que tirou da cartola

No outro espectro político, os obstáculos são parecidos. É improvável uma aliança entre a Nova Frente Popular e o Renascimento de Macron, destinado à irrelevância política se a derrota nas urnas tiver os contornos desenhados pelas pesquisas de opinião. Preocupados com a instabilidade social até as eleições presidenciais daqui a três anos, 170 diplomatas e ex-diplomatas publicaram uma carta no jornal Le Monde, na qual apontam os riscos de uma vitória do RN enfraquecer a França e a Europa no momento em que “a guerra está ao nosso lado”, alusão à mútua simpatia entre Le Pen e Vladimir Putin.

Há ainda quem proponha um governo de tecnocratas sustentado por diferentes forças partidárias, nos moldes da solução “Mario Draghi” adotada pela ­Itália antes da vitória de Giorgia ­Meloni. “Uma das hipóteses poderia ser nomear uma equipe de especialistas capaz de permanecer no poder por um ano ou mais”, afirmou o acadêmico Eric ­Landot em entrevista ao site Politico. Um dos nomes frequentemente citados pelos defensores da solução, não descartada por ­Macron, é o de Christine Lagarde, atual presidente do ­Banco Central Europeu e ex-diretora-geral do Fundo Monetário Internacional. Ao mesmo ­site, ­Lauréline Fontaine, professora de Direito Constitucional, minimizou, no entanto, a alternativa. “A França não pratica governos de coligação, a menos que todos os partidos estejam do mesmo lado do espectro político.”

Nos últimos anos, as barreiras de contenção da extrema-direita foram, pouco a pouco, postas abaixo na União Europeia. Os eleitores franceses dirão no domingo 30 se o avanço dos liderados por Le Pen na disputa pelas vagas no Parlamento Europeu foi um surto passageiro, um mero recado ao establishment, ou se o sistema de defesa da sociedade equivale, a esta altura, à Linha Maginot. •

Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.

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