Cultura
Uma forma de arte
A pesquisa de Lélia Gonzalez em torno das festas brasileiras ganha nova vida e novas interpretações em um livro e uma exposição


Uma das principais intelectuais brasileiras do século XX, Lélia Gonzalez (1935-1994) circulou suas ideias em cursos, palestras, artigos e ensaios. Mas foi somente na década passada, após a redescoberta de seu pensamento pioneiro, em especial sobre a mulher negra, que sua produção começou a ser organizada em livros de forma mais consistente
Em 1987, Lélia escreveu Festas Populares no Brasil, sua única publicação solo lançada em vida. Premiado na Feira do Livro de Leipzig, na Alemanha, o volume teve um alcance restrito: seus 3 mil exemplares foram distribuídos como brindes de fim de ano a parceiros e clientes da Coca-Cola, sem jamais terem chegado a livrarias e bibliotecas.
Pois agora o livro foi reeditado. Nele, a pesquisadora apresenta algumas das principais manifestações culturais do País, como o Carnaval, a Quaresma, festas afro-brasileiras e brincadeiras diversas, aí incluídos o bumba meu boi, os reisados e os fandangos. Nesse passeio, ela analisa o impacto das culturas africanas e indígenas em práticas herdadas dos portugueses.
“Apesar de a Lélia ter ficado conhecida como uma pensadora do feminismo negro, grande parte da sua produção acadêmica esteve no campo da cultura popular, abordando o papel dos escravizados dentro de um sistema opressivo e como eles procuraram formas de se inscrever e deixar suas marcas na cultura do colonizador”, afirma a historiadora Raquel Barreto, que investigou a intelectual em seu mestrado.
Festas Populares no Brasil. Lélia Gonzalez. Boitempo (176 págs., 83 reais) – Compre na Amazon
Essas reflexões se opõem à cordialidade proposta por estudiosos contemporâneos a ela, como Gilberto Freyre (1900-1987). “Não se trata de uma ode à miscigenação nem à democracia racial, porque há um entendimento de que esse processo envolve conflito e desigualdade. Mas, ainda assim, esses encontros acontecem e resultam no que conhecemos e definimos como cultura brasileira”, completa Raquel, que é curadora-chefe do Museu de Arte Moderna do Rio e assina o prefácio de Festas Populares no Brasil.
A reedição conta também com prólogo da cantora Leci Brandão, posfácio da acadêmica e dramaturga Leda Maria Martins e textos adicionais da atriz Zezé Motta e da filósofa Sueli Carneiro.
Ilustrado com mais de cem fotos, o novo volume traz imagens assinadas por Maureen Bisilliat, Walter Firmo – presentes na primeira edição –, Leila Jinkings, Marcel Gautherot (1910-1996), francês de origem operária radicado no Brasil, e Januário Garcia (1943-2021), grande amigo de Lélia e autor da foto de capa da vez, um registro de escolas de samba do Rio.
“É a partir dessas festas que muitas pessoas, sobretudo negras, têm sua primeira aproximação com as artes”, diz Raquel Barreto
A riqueza visual e a potência da discussão gerada pelo livro inspiraram a exposição Lélia em Nós: Festas Populares e Amefricanidade, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. O título alude a um termo criado pela pensadora para evidenciar os efeitos da diáspora africana nas culturas latino-americanas, antecipando em décadas os debates decoloniais.
Além de reunir fotografias, a exposição investe em pinturas, instalações audiovisuais e criações inéditas encomendadas especialmente para lembrar os 30 anos da morte de Lélia. “Essas festas são frequentemente vistas como algo menor ou folclórico. Mas, apesar de não terem o devido reconhecimento, são lugares de produção estética. É a partir dessas festas que muitas pessoas, sobretudo negras, têm sua primeira aproximação com as artes e começam a elaborar o mundo de outra forma”, diz Raquel, responsável pela mostra ao lado de Glaucea Britto, curadora-assistente do Masp.
Obras de Walter Firmo, Heitor dos Prazeres (1898-1966), Raquel Trindade (1936-2018) e Nelson Sargento (1924-2021), entre outros, permeiam o espaço expositivo, dividido em cinco eixos temáticos baseados nos escritos da homenageada.
Para discutir racismo e sexismo, as curadoras fizeram encomendas a cinco artistas mulheres, todas negras, de diferentes gerações. “Durante a pesquisa, notamos uma quantidade muito maior de homens trabalhando essa temática, quando sabemos que as mulheres têm uma participação ativa nas festas”, pontua Glauce.
Outros segmentos da exposição exploram a tradição da máscara, com seu papel nos contextos festivos, e os muitos sentidos possíveis para o conceito de beleza nesses espaços. “As cores e os materiais não são escolhidos aleatoriamente. Eles têm significados múltiplos, que têm a ver com valores atrelados à memória de uma comunidade. Uma boneca não é só um brinquedo, ela pode representar uma divindade, por exemplo”, explica a curadora.
Há ainda um espaço dedicado exclusivamente ao Carnaval, manifestação com a qual Lélia se envolveu como colaboradora do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo (G.R.A.N.E.S. Quilombo). Fundado em 1975, o grupo opunha-se ao aspecto comercial adquirido pela festa, defendendo uma perspectiva mais enraizada na cultura negra e popular.
Representações. Os pintores Heitor dos Prazeres (à esq.) e Maria Auxiliadora (abaixo) são dois dos artistas presentes na exposição Lélia em Nós: Festas Populares e Amefricanidade, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo – Imagem: Everton Ballardin e Bruno Leão
Esse trânsito entre a academia e a sociedade responde de forma direta pela originalidade do pensamento de Lélia, no qual se entrecruzam antropologia, sociologia, filosofia e ciência política.
Como professora, Lélia deu aulas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde guiou um inédito curso sobre culturas negras brasileiras. Em paralelo, integrou o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), em 1976, e, dois anos depois, ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado (MNU), marco no combate ao racismo.
Dessa atuação transversal surgiram os livros Lugar de Negro (1982), em coautoria com Carlos Hasenbalg (1942-2014), o já citado Festas Populares no Brasil, e nenhum outro mais. Para Raquel, a dedicação de Lélia à práxis pode ter contribuído para uma ênfase menor nas publicações, mas isso não diminui a força de suas ideias nem justifica o apagamento à qual foram submetidas após sua morte.
“Mais do que apenas pinçar a teoria de Lélia para analisar relações de raça e gênero, é preciso entendê-la dentro do pensamento maior de uma autora que, não fosse o racismo e o sexismo no Brasil, seria leitura obrigatória. O esforço hoje é para a obra dela não ficar restrita ao movimento negro”, diz Raquel. “Ela deve ser lida, discutida, questionada e problematizada no campo do pensamento social brasileiro.” •
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma forma de arte’
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