Cultura
Michael Caine, em cena aos 90
No filme A Grande Fuga, o ator interpreta um veterano da Marinha britânica que viaja até a França para celebrar o 70º aniversário do Dia D


Michael Caine usa dois relógios: um analógico para ver as horas e um Apple para todo o resto. Graças a isso, sabe até sua pulsação, diz, impressionado. Nesse momento, ele mostra que seu apartamento está a 26°C. Caine mora no Porto de Chelsea, em Londres: condomínios elegantes dos anos 1980 e a academia de ginástica da Princesa Diana. Ele gosta da segurança e tolera os helicópteros. Sua cobertura tem tapetes cor de caramelo, vistas de 360 graus, dois Oscar e 5 mil fotos de seus netos.
Estamos esperando por John Standing, seu colega de elenco em A Grande Fuga, que está preso no trânsito. Caine é um homem grande – aos 90 anos, ainda tem 1,85 metro – com quem se pode conversar à vontade. Mas estar à frente dele é intimidante.
Logo chega Standing, que tem 89 anos, mas é ágil como um estreante. Eles se acomodam, comentam o clima e uma janela é aberta. Caine olha para meu iPad, que confunde com um telefone: “Caramba, esse é grande!”
A Grande Fuga é brilhante, digo. Caine fica surpreso por eu ter assistido ao filme, e muito mais por ter gostado. Ele não gostou? “Sim. Mas fiz filmes dos quais gostei, mas outras pessoas discordaram de mim.”
Caine interpreta Bernard Jordan, veterano da Marinha Real Britânica que ganhou as manchetes em 2014, ao viajar sozinho de sua casa de repouso na Inglaterra até a Normandia, na França, para o 70º aniversário do Dia D. O filme – mais duro do que o cartaz indica e muito comovente – ficcionaliza uma amizade com Arthur (Standing), ex-piloto da Royal Air Force que ele conhece na balsa.
Os dois atores prestaram serviço nacional em Berlim depois da guerra e ambos acham que o serviço militar nacional deveria ser retomado. “Ele oferece uma percepção totalmente nova da vida”, diz Caine. “Percebo como os jovens são diferentes hoje. Eles são tão livres com tudo. O treinamento militar faz você pensar em ajudar outras pessoas. Meus netos, tudo o que eles fazem é jogar futebol.”
Standing comenta que uma de suas filhas é “meio consciente” e o adverte sobre ser cancelado. “É horrível! Não temos permissão para dizer nada. Odeio isso. É meio doido não poder fazer piadas de sogra.”
Caine confessa certa preocupação com os robôs, mas pondera: “Tenho 90 anos. Não me preocupo com o futuro. Eu me preocupo se vou chegar até o almoço”.
Caine e Standing se conheceram no verão de 1976, fazendo outro filme de guerra, A Águia Pousou. Caine interpretava um nazista ávido para assassinar Churchill; Standing, um vigário bem esquisito. As memórias das filmagens parecem escassas, mas eles concordam que a produção de filmes não mudou muito.
“Tenho 90 anos. Não me preocupo com o futuro. Eu me preocupo se vou chegar até o almoço”
“Faço meu próprio mundo”, afirma Caine. “E, se me contratarem, terão de me deixar fazer as coisas do meu jeito. Caso contrário, estrago tudo. E mesmo que eu faça do meu jeito também estrago tudo.” Ambos riem. “Michael, querido!”, diz Standing. Eles mudaram? Standing suspira: “Estamos terrivelmente velhos.” Ambos dizem que todos os amigos morreram. Pergunto qual a sensação.
“Solidão”, diz Caine. “Jantei ontem à noite aqui com oito mulheres. Shakira as entende. Eu não entendo. São as mulheres dos meus amigos. Muitas vezes me sento numa mesa cheia de viúvas.”
Ele e Shakira, de 76 anos, estão casados há mais de 50 anos. Envelhecer é menos terrível, aconselha ele, “se você for casado com alguém realmente bonito que não envelhece. Acordo todas as manhãs e lá está ela!”
No centro de A Grande Fuga há outro casamento duradouro, o de Bernie e Irene, interpretada por Glenda Jackson em seu último filme – ela morreu no ano passado. Os dois trabalharam juntos pela primeira vez há 48 anos. “Ela era muito jovem e bonita”, diz Caine. “Muito atraente. Muito boa atriz. Mas era uma socialista de esquerda, e eu sou totalmente a favor de ganhar dinheiro, porque venho de uma família muito pobre.”
Seus personagens são um casal dedicado que não teve filhos, embora o filme não mencione o fato. Isso pode ter mudado a dinâmica entre eles? “Tremendamente”, diz Caine. “Vocês não têm nenhuma outra coisa para conversar. Falam um do outro. E você não precisa julgar o que a pessoa sente em relação a outra pessoa. Só a você.”
É uma visão perspicaz, especialmente considerando que ele “sempre teve crianças ao redor, como um incêndio”. Sua filha mais velha nasceu quando ele tinha 23 anos. Standing murmura em concordância. Ele também é casado há décadas. O segredo, diz, é “rir juntos”.
O verdadeiro tema de A Grande Fuga é que a única fuga da velhice é a morte. Mesmo assim, Caine e Standing continuam a produzir trabalhos que seguirão vivos depois que eles partirem. Caine escreveu seu primeiro romance acamado, durante o confinamento, e agora está escrevendo um segundo livro. Standing é pintor profissional. Eles têm seis filhos ao todo. Algum desses empreendimentos é melhor ou pior como tentativa de alcançar a imortalidade? Na verdade, só existe uma, diz Caine: “Bondade”.
A Grande Fuga já foi citado como o último filme de Caine, assim como acontecera com Harry Brown (2009) e, 24 filmes depois, com A Última Turnê (2021). Não é. Ele vai filmar outro em janeiro, no qual interpretará Charles Darwin. “E será isso. Não farei outro depois.” Tem certeza? “Não! Mas a questão é: você consegue fazer? Decorar todas as falas? Me acostumei a não trabalhar e ficar na cama até as 11 horas e sair até tarde da noite. Amo isso.” •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1317 de CartaCapital, em 03 de julho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Michael Caine, em cena aos 90’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também
