Mundo
Gosto de derrota
Para o jornalista Alain Gresh, especialista em Oriente Médio, a violência israelense é sinal de fracasso


Desde a guerra de 1967 e a ocupação por Israel de Jerusalém Leste, de Gaza e da Cisjordânia, o jornalista Alain Gresh cobre o conflito entre palestinos e israelenses. Ex-redator-chefe do Le Monde Diplomatique, Gresh fundou o site Orient XXI, bússola para quem quer entender a região. Autor de vários livros sobre o Oriente Médio, o jornalista, por muito tempo importante quadro do Partido Comunista Francês, acaba de lançar mais uma obra, Palestine – Un Peuple Qui Ne Veut Pas Mourir, tema desta entrevista.
CartaCapital: Por que este conflito é tão complexo e desperta tantas paixões?
Alain Gresh: Por ser, ao mesmo tempo, complexo e simples. Pelo direito internacional aceito por todo o mundo, há territórios ocupados desde 1967 por Israel e neles o Estado Palestino deveria ser criado. Há uma ocupação e desde seu início, em 1967, houve 50 resoluções da ONU, do Conselho de Segurança, nunca aplicadas por uma simples razão: os Estados Unidos oferecem uma proteção total a Israel e os europeus fazem o mesmo. Logo, não há sanções a Israel para impor o direito internacional. Isso é importante, pois este conflito é global. A Palestina é muito pequena comparada a outros países, mas, ao mesmo tempo, é uma disputa emblemática entre o Ocidente e o resto do mundo, pois mostra que o direito internacional, para o Ocidente, só se aplica quando se trata dos interesses ocidentais, não pelo próprio direito. A melhor prova é o que se passa na Ucrânia. Houve medidas de sanções à Rússia, o Ocidente envia armas. Mas, no caso do povo palestino, recusa-se o direito à resistência. E a consequência é que, quando o Ocidente faz apelo ao direito internacional, não tem mais credibilidade.
CC: Sobretudo com os países do Sul Global?
AG: Quando os ocidentais se dirigem aos países do Sul que condenaram a intervenção russa, para lhes pedir que apliquem sanções contra Moscou, eles respondem: “Compreendemos seus interesses geopolíticos, mas não é pelo direito internacional que vocês lutam. Vocês invadiram o Iraque em 2003, vocês aceitam a ocupação da Palestina etc.”. Os países do Sul Global se sentem próximos das reivindicações dos palestinos. Por que o problema é tão sensível? Em parte, por estar ligado ao que se costuma chamar de “a questão judaica”. Para muitos, o Estado de Israel é o herdeiro do Holocausto, de certa forma, e os europeus têm um sentimento de culpa. Seja a França, seja a Alemanha, muitos países participaram do Holocausto, mas o paradoxo é que eles tentam fazer os palestinos pagar por um problema que não é deles.
“A segurança baseada na força não é eficaz no longo prazo”
CC: Qual será o desfecho desta guerra assimétrica?
AG: É difícil dizer, estamos em uma guerra sem-fim. Excetuando o conflito de 1948 e 1949, nenhuma outra contenda entre Israel e os países árabes ou entre Israel e os palestinos durou tanto tempo. A invasão do Líbano por Israel, em 1982, durou três ou quatro meses. Estamos numa situação de drama permanente. Os massacres continuam, apesar de todas as declarações da Corte Internacional de Justiça, da Corte Penal Internacional. A credibilidade de Israel se deteriora, vemos mobilizações populares no mundo inteiro, inclusive com sanções da parte de alguns países, sobretudo na América Latina, que chegaram a romper relações com Israel. Isso tem consequências para a respeitabilidade israelense. Mas, enquanto os norte-americanos e os europeus continuarem a lhe dar um guarda-chuva moral e ideológico, Israel não vê razões para parar.
CC: Israel é uma teocracia ou uma democracia no estrito sentido do conceito?
AG: Para os cidadãos judeus, é uma democracia com todos os limites de todas as democracias, nenhuma é perfeita. Uma democracia defende um certo número de direitos dos cidadãos, ainda que depois do 7 de outubro os ataques à liberdade de expressão tenham se multiplicado. Mas há um pluralismo político, uma Justiça mais ou menos independente. Nesse ponto de vista, é uma democracia. O problema não é a relação com a religião. É a relação com os palestinos. Não é uma democracia total porque um povo que oprime outro povo não pode ser um povo livre. É simples assim.
CC: Israel, que se considera uma democracia, não permite a israelenses de origem palestina comprarem terras, protege os colonos que destroem casas palestinas, mantém palestinos em prisão administrativa sem processo. Israel caminha para se tornar uma teocracia com religiosos no governo Netanyahu?
AG: O problema é que é difícil definir o que é um judeu e mais difícil ainda o que é um “Estado judeu”. A maior parte daqueles que construíram o Estado de Israel era laica, muitos eram ateus. O que é um Estado judeu? Certo é que, depois da guerra de 1967, viu-se o desenvolvimento de uma corrente religiosa e nacionalista, muitas vezes isso está associado, outras não. Pensam que Deus deu aquela terra aos judeus. É um nacionalismo puro, segundo o qual os judeus são os herdeiros de um império de 3 mil ou 4 mil anos atrás e que seus direitos são superiores aos dos outros, um nacionalismo étnico muito forte. Isto é de fato o mais perigoso, vê-se a influência deles aumentar. Mas não podemos superestimar essa influência, que existe porque os outros partidos não são de oposição. Hoje há um consenso popular e político de 80% dos israelenses que pensam que é justo matar de fome os palestinos. Benny Gantz, que acaba de deixar o gabinete de guerra, e Yaïr Lapid também não são contra a operação em Gaza.
Interesse. No novo livro, Greish, que cobre a região desde os anos 60, esgrima argumentos irrefutáveis – Imagem: Jack Guez/AFP
CC: Onde está a esquerda israelense?
AG: A esquerda anticolonial sempre foi fraca. Está mais fraca ainda. Há um jornal como o Haaretz, de centro-esquerda, e o jornal +972, que tem uma orientação anticolonial, há também o que se chama de bloco anticolonização. Mas o 7 de outubro foi um grande golpe. Reforçou a ideia de que a paz não é possível, que “os árabes só entendem à força, são incivilizados”. Todo mundo em Israel tem um amigo, um parente morto ou ferido no 7 de outubro e isso alimenta o desejo de vingança. Ao mesmo tempo, o ataque é uma prova cabal de que Israel não é um refúgio para os judeus do mundo, que a segurança baseada na força não é eficaz no longo prazo. Eles podem esmagar os palestinos hoje, mas a realidade é que no território histórico da Palestina há 8 milhões de judeus israelenses e 8 milhões de palestinos. E os israelenses não sabem o que fazer, é um dos fracassos do sionismo. Eles conseguiram criar Israel, mas fracassaram na solução do problema palestino.
CC: Rony Brauman, ex-presidente do Médicos Sem Fronteira, disse numa entrevista que Israel é “um gueto superarmado”. O senhor diz que essa segurança não é suficiente…
AG: Diz-se também que Israel é um exército que tem um Estado. O peso das Forças Armadas é muito grande. Há uma mentalidade que transparece de que não querem se integrar na região, pois se integrar significa fazer concessões.
CC: A começar por igualdade entre todos os cidadãos.
AG: Exatamente.
CC: No livro, o senhor informa que há mais de 3 mil palestinos nas prisões de Israel. Eram 1,2 mil antes do 7 de outubro. A sociedade israelense aceita esse desvio do direito ou os cidadãos desconhecem esses números?
AG: Eles sabem. Houve um período, os últimos dez anos, no qual os israelenses podiam viver sem ver os palestinos. De vez em quando, havia uma guerra em Gaza, mas Gaza era longe. De vez em quando, havia uma incursão na Cisjordância, mas os israelenses não viam nada. E a mídia israelense não os ajuda a ver nada disso. Ela tem aspectos democráticos, debates, podem insultar o primeiro-ministro, mas há uma linha vermelha que não se pode ultrapassar, os militares. Quando há um comunicado das Forças Armadas, ele é aprovado e reproduzido nos jornais.
CC: Neste momento os jornais estão sob censura.
AG: Sempre há censura, mas existe um consenso sobre as Forças Armadas. É preocupante. Não sei se você conhece a história das leis adotadas pelos britânicos, em 1945 e 1946, para lutar contra o terrorismo sionista. À época, os sionistas haviam organizado grandes manifestações contra essas leis e conto em um dos meus livros que havia um sionista, depois ministro da Justiça de Israel, que disse: “Nem os nazistas ousaram inventar uma lei como esta”. Logo após o Estado de Israel ser criado, adotaram essas mesmas leis.
“O direito internacional só se aplica quando se trata dos interesses do Ocidente”
CC: Desde 7 de outubro, a mídia e os homens públicos na França fazem o processo político dos deputados do partido La France Insoumise por suas posições. Cobram o uso da palavra “terrorismo” para qualificar os crimes do Hamas. A filósofa norte-americana Judith Butler teve uma conferência anulada sob a pressão dos lobbies sionistas, por ter ousado falar de “ato de resistência” sobre o 7 de outubro. O que significa isso tudo?
AG: Desde a guerra de 1967, quando comecei a acompanhar o conflito, nunca vi uma situação semelhante, uma tal pressão para minar a credibilidade de quem tem uma opinião diferente.
CC: Pode-se falar de clima de histeria?
AG: Sim, há esse clima. Alguns canais de tevê têm esse papel de impor um certo discurso. Era impossível ter uma discussão racional. Pode-se condenar o Hamas e pensar que é uma organização monstruosa, mas tentar entender sua origem. Cerca de 40% da população da Cisjordânia e de Gaza votou no Hamas. Se houvesse eleições hoje, ele ganharia com 60%. É preciso compreender a origem disso. Sempre contestei o termo terrorismo. Pode-se dizer: “Terrorismo é atacar civis por objetivos políticos”. Mas há objetivos políticos. Uma organização não utiliza o terrorismo como uma estratégia, como um objetivo, ela utiliza uma tática. Os movimentos de libertação da Argélia utilizaram porque eram muito fracos. Não é uma guerra entre dois exércitos equivalentes. É um conflito entre grupos e uma das Forças Armadas mais poderosas do mundo. Neste contexto, o terrorismo é utilizado porque existe um contexto de bloqueio de toda perspectiva política. Gaza está sob embargo total de Israel há quase 20 anos. Quem tem 30 anos de idade não conheceu outra situação. Não tem perspectiva, existe um desespero. Quando vêm propor aos jovens a luta armada, eles têm a impressão de que isso vai salvá-los. •
Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
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