Política
Em causa própria
Em campanha para emplacar o sucessor na Câmara, Arthur Lira reedita a aliança com o bolsonarismo


A Polícia Federal encerrou uma investigação sobre Juscelino Filho, ministro das Comunicações, e concluiu que ele aprontou. Agora a Procuradoria-Geral da República decidirá se o denuncia ao Supremo Tribunal Federal por corrupção, lavagem de dinheiro e quadrilha, crimes imputados pela PF. O maior desgaste pela situação recai sobre o presidente Lula, pois o deputado é seu ministro. Os ilícitos atribuídos a Juscelino Filho teriam, porém, sido cometidos por meio de uma estatal durante o governo de Jair Bolsonaro. E com dinheiro de emendas parlamentares, fonte do poder do presidente da Câmara dos Deputados, o alagoano Arthur Lira. Às vésperas de a PF finalizar quatro inquéritos sobre Bolsonaro, Lira une-se aos aliados do capitão por comunhão de interesses, o que transformou a Câmara em uma casa de espetáculos do pior tipo. “Ele vai fazer de tudo para salvar Bolsonaro”, dizia no fundo do plenário, na quarta-feira 12, um conterrâneo do deputado.
Lira quer levar adiante a votação de uma lei que proíbe a delação de presos e permite ao alvo da denúncia tentar impugná-la antes da homologação judicial. Bolsonaro foi delatado pelo ex-ajudante de ordens Mauro César Barbosa Cid, tenente-coronel do Exército preso de maio a setembro de 2023 e solto após um acordo com a PF. O deputado Chiquinho Brazão, do Rio de Janeiro, acusado pela polícia e a Procuradoria de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco, também foi delatado por um preso, Ronnie Lessa, PM em cana desde 2019 e autor dos disparos contra a vereadora carioca.
A lei a caminho de votação não anula delações passadas, mas pode criar condições para tanto. Há quem diga, como o deputado Tarcísio Motta, do PSOL do Rio, amigo de Marielle, que Bolsonaro e Brazão teriam a possibilidade de alegar que, quando uma lei beneficia um réu ou acusado, sua aplicação é retroativa. Embora haja quem diga também, caso de Wadih Damous, ex-presidente da OAB do Rio e autor, em 2016, de um Projeto de Lei similar, que proibir delação de preso é matéria de processo penal, não de lei penal. Advogado e deputado pelo PT do Maranhão, Rubens Júnior fareja que as defesas de Cid e Lessa podem desistir dos acordos firmados, caso a lei vingue. Certo é que não faz sentido Lira dar uma força a Bolsonaro sem que tal medida sirva à defesa do capitão. Defesa que terá cada vez mais trabalho. A PF terminará até agosto quatro investigações sobre o ex-presidente, disse na terça-feira 11, em café da manhã com jornalistas, o diretor-geral da corporação, Andrei Rodrigues. São inquéritos sobre cartões fajutos de vacina anti-Covid, comércio de joias, tentativa de golpe de Estado e uso com fins políticos e pessoais da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência. A descoberta de uma nova joia nos Estados Unidos e a possibilidade de delação sobre a “Abin paralela” esquentam a reta final das apurações.
Na mesa, atalhos para uma futura anistia a Bolsonaro e pautas morais
Policiais estiveram, entre abril e maio, nos EUA em busca de pistas e provas sobre o comércio de joias, ação em parceria com o FBI, e identificaram a nova peça pertencente, em tese, ao Brasil e que teria sido objeto de negociação por interesse de Bolsonaro. A descoberta “robustece a investigação”, conforme Rodrigues, e reforça a tese do “crime continuado”, segundo Ricardo Saadi, diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado e à Corrupção. “Crime continuado” é quando alguém comete o mesmo ilícito duas ou mais vezes. E pesa no aumento de uma eventual pena. O esquema das joias tem três ilícitos potenciais: peculato, lavagem e organização criminosa.
Até então, a PF tinha certeza e detalhes sobre dois conjuntos de joias embolsados pelo capitão e devolvidos após revelações da mídia. Um kit rosé e um “ouro branco”. O primeiro estava, segundo os investigadores, no avião da FAB que levou Bolsonaro aos EUA em 30 de dezembro de 2022, antevéspera da posse de Lula. Homens da confiança do capitão tentaram vendê-lo em 8 de fevereiro do ano passado, por 120 mil dólares, por intermédio de uma empresa de Nova York. O leilão online fracassou. O kit “ouro branco” chegou a ser parcialmente vendido por Cid, em junho de 2022, na cidade de Willow Grove, por 68 mil dólares. A grana ficou na conta do pai de Cid, um general amigo de Bolsonaro. A entrada da família na mira da PF contribuiu para o tenente-coronel delatar.
No caso da “Abin paralela”, a delação “está em fase de discussão interna (PF) e com possíveis colaboradores”, segundo Rodrigues. Os candidatos a alcaguetes são, possivelmente, dois servidores da agência presos preventivamente em outubro passado: Eduardo Arthur Izicki e Rodrigo Colli, alvos de um processo administrativo na Abin por tentarem fazer negócios com o governo Temer via laranjas. Para escapar de punição, teriam ameaçado revelar o uso ilegal, pelas gestões Temer e Bolsonaro, de uma ferramenta espiã. Esta é uma peça de arapongagem que teria sido armada pelo vereador Carlos Bolsonaro, filho de Jair, e Alexandre Ramagem, diretor da agência durante o mandato do capitão e atual deputado pelo Rio. Os crimes em questão são interceptação de comunicações sem aval judicial, invasão de dispositivo de informática e organização criminosa.
Troca. Bolsonaro ganharia rotas de fuga. O presidente da Câmara amealharia votos – Imagem: Mauro Pimentel/AFP
As conclusões da PF sobre os inquéritos a envolver Bolsonaro serão enviadas ao procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, que as examinará e decidirá se acusa o capitão ao Supremo. O País estará às vésperas ou no início da eleição municipal (a campanha começa em 16 de agosto). O PT não deixará de explorar a enrascada do capitão em disputas a prefeito de São Paulo, diz o deputado paulista e petista Rui Falcão. Lula e o PT apoiam Guilherme Boulos, do PSOL, contra o bolsonarista envergonhado Ricardo Nunes, do MDB, que tentará a reeleição.
Ser formalmente acusado à Justiça afetará o capital político de Bolsonaro? O eleitor raiz do capitão acredita que ele é “perseguido” pela mídia e o STF, conforme pesquisa qualitativa conduzida por Esther Solano, Camila Rocha e Thais Pavez. “Ainda que Bolsonaro perca parte de seu apelo, o bolsonarismo não depende de sua liderança. Todos os entrevistados reconhecem que já existem outros quadros que podem conduzir o seu projeto político, basta que sinalizem sua adesão enfática aos ‘princípios bolsonaristas’”, escreveu Camila Rocha, em 9 de junho, no portal UOL.
Conservadorismo moral é um desses princípios, por esse motivo Lira comandou a aprovação, na quarta-feira 13, de um pedido de urgência para o plenário examinar uma lei que impõe ao aborto penas iguais àquelas de homicídio. Pelo Código Penal, um aborto prevê prisão de um a três anos para a mulher e de até dez anos para o médico. Em caso de risco de vida para a gestante ou de ser uma gravidez resultante de estupro, não há punição. A lei pronta para ser votada aplica a tais situações sentenças de seis a 20 anos, na hipótese de o aborto ser feito com 22 semanas ou mais de gestação. “Querem usar isso no processo eleitoral de 2024, é manipulação da legítima fé do povo brasileiro”, diz Motta.
A PF prepara a conclusão de quatro inquéritos em curso contra o ex-presidente
Significaria equiparar uma menina de 18 anos vítima de estupro e que aborta ao deputado Chiquinho Brazão, acusado ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco. Na terça-feira 18, o Supremo decide se converte o parlamentar em réu. Caso o torne, será ainda mais difícil Brazão escapar da degola pelos pares. O Conselho de Ética da Câmara tem um processo de cassação do mandato por quebra de decoro. Na quarta-feira 12, a relatora, deputada Jack Rocha, do PT capixaba, adiou a entrega de um plano de trabalho, justamente à espera do julgamento do Supremo. Em 7 de junho, o juiz Alexandre de Moraes, relator do processo contra Brazão no STF, autorizou a divulgação de parte do vídeo do depoimento do delator Lessa à PF, no qual o PM conta o que sabe. Tem em torno de três horas e meia, disponível na internet. Conteúdo bem mais contundente perante a opinião pública do que papéis.
Brazão está preso preventivamente desde março. Em abril, a Câmara decidiu se concordava com a prisão. Referendou, por 277 votos, 20 acima do necessário, a 129. A votação expôs uma grande aliança entre Lira, o bolsonarismo e o miliciano Brazão. Aliança que, da parte do chefe da Câmara, busca recompensa na forma da eleição de seu sucessor. Um dos votos contra a prisão foi do baiano Elmar Nascimento, líder do União Brasil, nome que, hoje, Lira quer para sucedê-lo em fevereiro de 2025. Outro voto a favor da libertação foi o de Luciano Amaral, líder do PV, conterrâneo de Lira e autor de uma lei antidelação, apresentada em setembro de 2023, dias após a homologação do acordo de Mauro Cid. No fim de maio, Amaral propôs urgência ao projeto. O pedido foi endossado por Nascimento e pelos líderes do PL (sigla de Bolsonaro), Altineu Cortes, do Solidariedade, Áureo Ribeiro, do MDB, Isnaldo Bulhões, e do Podemos, Romero Rodrigues.
Gato e rato. Rodrigues, da PF, promete concluir quatro inquéritos contra Bolsonaro. Amaral aproxima-se de Lira. Brazão está encalacrado – Imagem: Zeca Ribeiro/Ag. Câmara, Gilmar Felix/Ag. Câmara e Joédson Alves/ABR
Amaral, de 37 anos, é novato em Brasília. Não havia disputado eleição até 2022, quando se elegeu como o terceiro mais votado em Alagoas. Sua trajetória no estado não se liga a Lira. Foi diretor-financeiro da Assembleia Legislativa quando a casa e o governo estavam em mãos tucanas (de 2007 a 2015). Aproximou-se em seguida de um político, o deputado estadual Marcelo Victor, colaborador do ex-governador Renan Filho, hoje ministro dos Transportes, e do atual, Paulo Dantas, ambos do MDB. É este, aliás, desde 2022, o partido de Victor, no comando da Assembleia desde 2019. Uma operação da PF em outubro de 2022 confiscou 146 mil reais com Victor em uma mala que continha “santinhos” de Amaral. O senador Renan Calheiros dizia que a PF atuava naquele ano em Alagoas para prejudicar a reeleição de Dantas e, por tabela, favorecer Lira.
Uma vez em Brasília, Amaral parece, digamos, flertar com Lira. Em agosto passado, chegou a vice-presidente da Comissão Mista de Orçamento, cargo que não alcançaria sem a bênção do chefão da Câmara. Lira, diz um deputado conterrâneo, vai fazer de tudo para eleger o sucessor, pois só assim terá como manter força e influência. Transformar a Câmara em um show de horrores faz parte desse plano. •
Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.
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