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Verve e eloquência

Ao lado de Brizola, Maria da Conceição Tavares formou a maior dupla de oradores das últimas décadas

Verve e eloquência
Verve e eloquência
Os meios de comunicação enviaram a economista para a Sibéria, mas ela escapou – Imagem: Marcelo Carnaval
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A comoção provocada pela morte de ­Maria da Conceição Tavares é mais uma demonstração da força incontrastável da sua personalidade vulcânica. Ela impressionava não só pelo seu conhecimento e inteligência, mas também – e nisso era insuperável – pela verve e eloquência.

O Brasil teve dois grandes oradores nas décadas recentes – ela e Leonel ­Brizola. Quando Conceição tomava a palavra e, especialmente, quando conseguia conter um pouco seus rompantes, ela brilhava intensamente e deixava marcas inesquecíveis. Ainda me lembro dela num evento em Buenos Aires, nos anos 1980, irritada com o radicalismo dos argentinos, exclamando: “Vocês são uns românticos alemães!”, para depois desenvolver toda uma argumentação em favor da moderação e do equilíbrio. Observação agudamente perspicaz a dela. Quem conhece a Argentina e o romantismo alemão há de concordar que existe, sim, um parentesco que ajuda a entender a atração pelo abismo dos nossos queridos vizinhos.

Em outra ocasião, presenciei um debate dela com estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pressionada por intervenções hiperesquerdistas da plateia, ela explodiu: “A ideologia é uma plataforma precária!” Advertência fundamental. Conceição não deixava de ser ela mesma uma ideóloga, como é natural, mas nos ensinava que sem estudo, conhecimento e ciência não se chega nem na esquina.

Esses dois episódios são reveladores de um traço do seu caráter. Conceição era um paradoxo ambulante. Defendia a cautela com o máximo de exaltação, pregava a moderação aos berros. Só quem a conhecia um pouco mais de perto sabia que a sua fúria retórica escondia uma personalidade essencialmente moderada.

Destaco mais um aspecto notável de sua trajetória. Lembre-se, leitor ou leitora, que duas circunstâncias limitaram muito a sua repercussão pública. Primeira: nunca teve cargos de relevo no governo federal. Em determinado momento, nos anos 1990, creio que Conceição teve a pretensão de tornar-se presidente do Banco Central. “Temos que tirar o Banco Central das mãos dos bandidos”, bradava. Não conseguiu. Desde então, esse cargo foi ocupado quase sempre por figurinhas carimbadas do mercado financeiro. Conceição ficou de fora e nunca teve a projeção automaticamente conferida por funções de destaque na área econômica do governo.

Outra circunstância adversa: ela foi mandada para a Sibéria pela mídia tradicional. E para sempre. Sofreu uma espécie de exílio interno. Nunca voltou das estepes geladas. Raramente era entrevistada, os seus artigos quase nunca chegavam às páginas dos jornais, a sua voz não chegava à rádio e muito menos à televisão.

Apesar disso, apesar da censura sistemática, apesar de não galgar posições no governo, a voz de Conceição ecoava forte por todo o País. Era admirada, respeitada e temida. Ai de quem se descuidasse na presença dela. Qualquer deslize ou inconsistência suscitava reações fulminantes. Eu mesmo, quando a encontrava, tomava o máximo cuidado para não dizer nada de remotamente controvertido e desencadear alguma explosão.

Com o surgimento das redes sociais, sua projeção se ampliou. A mídia convencional perdeu o seu monopólio e gente como Conceição pôde participar mais do debate público. Muitos que ainda não a conheciam ficaram deslumbrados com seu brilho, capacidade polêmica e vasto conhecimento – não só de economia, mas de política, história e cultura. Viram o seu compromisso inabalável com o Brasil. E, ao mesmo tempo, a sua indignação com as injustiças sociais e a extrema desigualdade na distribuição da renda e da riqueza no nosso país. Gravações das suas aulas e palestras viralizaram.

Ela tem sido intensa e merecidamente homenageada nos últimos dias. Porém, muitos dos que falam elogiosamente sobre Conceição, postam fotos com ela e lamentam a sua morte pouco ou nada têm a ver com o seu pensamento e a sua pregação. Lágrimas de crocodilo. Ela teria recebido essas homenagens a patadas.

Machado de Assis dizia de um recém-falecido, pela boca de um dos seus personagens: “Está morto, podemos homenageá-lo à vontade”. Só lamento que Conceição não tenha sido ainda mais reconhecida e homenageada em vida. •

*Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional pelo Brasil em dez países. E-mail: paulonbjr@hotmail.com


Da “Veneza” portuguesa à Baía de Guanabara

Tavares deixou a ditadura salazarista para trás, mas nunca desistiu do Brasil

Anadia é um vilarejo parado no tempo no noroeste de Portugal. Tinha 23.245 almas quando Maria da Conceição de Almeida Tavares nasceu, em 1930, atualmente tem 27.532, segundo o último Censo. Integra o distrito de Aveiro, cidade cortada por dois canais que os locais, dotados de imaginação peculiar e excessiva alegoria, apelidaram de a “Veneza” portuguesa. Fausto, o pai anarquista, abrigou refugiados da Guerra Civil Espanhola, combatentes perseguidos por Francisco Franco, aliado do ditador português António de Oliveira ­Salazar. Conceição Tavares viveu a adolescência e parte da juventude sob o regime salazarista. Licenciou-se em Matemática em 1953, em Lisboa, após abandonar o curso de Engenharia. Um ano depois, grávida da filha Laura, mudou-se para o Rio de Janeiro acompanhada do primeiro marido, o engenheiro Pedro José Serra Soares. Trabalhou no Inic, precursor do Incra, obteve a cidadania brasileira e em 1957 ingressou no curso de Economia da Universidade do Brasil, futura UFRJ, onde mais tarde faria história como professora. Passou pelo BNDES e integrou um dos grupos executivos do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Formou gerações de economistas e políticos e abraçava a função de intelectual pública. Depois de uma década filiada ao PMDB, trocou o antigo partido de oposição à ditadura brasileira pelo PT, legenda pela qual seria eleita ­deputada federal em 1995. Cumpriu um único mandato. Permaneceu no Partido dos Trabalhadores até o fim da vida, mas, aos poucos, afastou-se da militância. Nos últimos anos, em contraste com o isolamento físico, tornou-se uma “influenciadora” nas plataformas digitais. Aulas, entrevistas e palestras foram descobertas pelos jovens, estudantes de Economia ou não. As frases, diretas, irônicas, icônicas, sonantes, continuam a causar o mesmo efeito que provocavam nos interlocutores da “Idade da Pedra”, antes do advento da ­internet. Uma delas, dita em 1995: “Se você não se preocupa com justiça social, com quem paga a conta, você não é um economista sério. Você é um tecnocrata”. Como se vê, o pensamento de Conceição ­Tavares não sai de moda.

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

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