Sociedade
De braços meio abertos
O Brasil é rápido no acolhimento a refugiados, mas não tem uma política consistente de integração


Mohammad Yahya Gholami estava no grupo de afegãos acampado no Aeroporto Internacional de Guarulhos no início deste ano. Gholami deixou a capital Cabul por pertencer à etnia xiita hazara, alvo permanente de perseguição do governo talebã. “Ser um hazara hoje no Afeganistão, se você trabalhou com o governo anterior ou para qualquer organização ou empresa estrangeira, significa ter sua vida em real perigo. Por isso eu não tive outra alternativa a não ser deixar meu país. Escapei para o Irã, onde a minha ideia era estudar, mas, como a situação dos afegãos lá também não é nada boa, já que a gente sofre muito preconceito da população e dos governos locais, achei que no Brasil eu poderia encontrar melhores oportunidades para a minha vida”, diz o jovem de 20 anos. Sem emprego e sem dominar a língua portuguesa, Gholami vive atualmente em um abrigo para refugiados mantido por uma ONG no interior de São Paulo. Conseguiu CPF e carteira de trabalho, mas enfrenta dificuldades para encontrar um emprego e voltar a estudar. Por ora, frequenta aulas de Português.
A história de Gholami cruza-se com aquelas de mais de 700 mil refugiados no Brasil, considerado uma das nações mais progressistas no acolhimento de migrantes, mas que peca na oferta de políticas públicas para a permanência desses estrangeiros. Embora não seja a rota principal no fluxo migratório mundial, o País tem sido cada vez mais a porta de entrada para cidadãos de outras nacionalidades, fugitivos de guerras e perseguições religiosa, política e étnica. Segundo o Refúgio em Números 2024, documento lançado na quinta-feira 13 pelo Ministério da Justiça em parceria com o Observatório das Migrações Internacionais e a UnB, 406.695 imigrantes solicitaram refúgio entre 2011 e 2023, dos quais 58,6 mil só no ano passado.
Encontrar emprego e validar diplomas superiores estão entre os principais entraves
O Ministério da Justiça analisou 138,3 mil processos em 2023 e acatou 77 mil. Até dezembro, 143 mil tinham sido reconhecidos como refugiados pelo Conare, crescimento de 117,2% em comparação a 2022. “A gente tem atuado no fortalecimento da capacidade das instituições para atender essa demanda crescente por proteção do Estado brasileiro. Temos desenvolvido sistemas e trabalhado na capacitação dos servidores, na utilização de ferramentas de Inteligência Artificial e de informática. Hoje, todo o processamento é online, tanto o pedido quanto a nossa análise e resposta. Isso dá celeridade e transparência ao processo, numa parceria com a sociedade civil e com as universidades”, afirma Luana Medeiros, diretora do Departamento de Migrações da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério das Justiça. De acordo com a plataforma DataMigra, 29,4 mil venezuelanos atravessaram a fronteira em 2023 para escapar da crise no vizinho, enquanto 11,4 mil cubanos pediram asilo. Angolanos, vietnamitas e colombianos também se destacam nas estatísticas. O estado de Roraima registrou o maior fluxo migratório no ano passado, 25,6 mil estrangeiros, seguido por São Paulo, que contabilizou 13,8 mil. Amazonas, Paraná e Acre são as outras portas de entrada utilizadas com maior frequência.
“Até 2010, o Brasil tinha uma migração muito tradicional, histórica e europeia, mas desde 2011 tem recebido o que a gente chama dos novos fluxos do Sul Global. Uma série de fatores geopolíticos ocorreram e trouxeram esses migrantes. O primeiro caso conhecido foi o dos haitianos, que começaram a chegar em 2011. Em dois anos, superaram os portugueses. Depois teve um espalhamento geográfico maior, de diferentes regiões do globo, e, ultimamente, tem se concentrado muito em países da América Latina, como a Venezuela, que encabeça a lista de pedidos de refúgio”, destaca Leonardo Cavalcanti, professor da UnB e coordenador do Observatório das Migrações Internacionais.
Rede de proteção. Almeida, do Acnur, e Medeiros, do Ministério da Justiça – Imagem: Pedro França/Ag. Senado
Signatário da Convenção de Genebra de 1951, o Brasil dá abrigo a todo e qualquer estrangeiro em busca de asilo humanitário, emite documentos e concede aos migrantes o mesmo tratamento dispensado aos brasileiros. “Temos o histórico de sermos propulsores do direito internacional e de obedecermos às regras, mas abrir ou não as portas é uma opção política do Estado. Receber refugiados é uma escolha”, diz o advogado Carlos Eduardo de Castro, pesquisador do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes da USP e integrante das Comissões de Direitos Humanos (Migrações) e Diversidade Sexual e de Gênero da OAB São Paulo. Castro ressalta, porém: o País peca por não oferecer estrutura para a permanência dessa população.
Paulo Sérgio Almeida, oficial de Meios de Vida da Agência da ONU para Refugiados, Acnur, reconhece que o Brasil tem uma política aberta em relação ao acolhimento de refugiados e necessitados de proteção internacional e conta com uma legislação mais avançada do que outros países, mas necessita de uma política pública nacional e específica para atender os solicitantes. “O País evoluiu muito na construção de um marco normativo para acolhimento dos refugiados, mas avançou pouco no acesso às políticas públicas, que ainda são muito fragmentadas. São necessários projetos que sejam adaptados à realidade dos requerentes, para que eles não se tornem invisíveis”, defende. “É preciso uma política nacional que estabeleça a forma como os direitos garantidos pela legislação possam se concretizar na prática. A própria lei de imigrações estabelece, no artigo 120, a necessidade de uma política específica, mas ela ainda não veio.”
ONGs e empresas privadas têm atuado para facilitar a entrada dos refugiados no mercado de trabalho
Um dos maiores desafios para a população refugiada no Brasil é a inserção no mercado de trabalho. Embora tenham direito à carteira de trabalho, muitos não conseguem emitir o documento porque não existe mais a versão física, apenas a modalidade digital. “Como é que alguém em situação de refúgio, que não tem dinheiro para comer, vai ter celular para baixar uma carteira digital de trabalho?”, pergunta a professora Natália Simões, coordenadora da Clínica de Direitos Humanos do Centro Universitário do Estado do Pará, que atende centenas de migrantes por ano, oriundos de países como Venezuela, Colômbia, Chile e Argentina. Além da documentação, a maioria não fala português, o que amplia as dificuldades. Muitos têm formação superior e até pós-graduação, mas, por falta de oportunidades, terminam por se submeter ao subemprego ou são levados à situação análoga à escravidão, a exemplo dos bolivianos resgatados de uma oficina de costura, em abril de 2023, no interior de São Paulo.
No fim de 2022, o Tribunal Superior do Trabalho criou um grupo técnico para elaborar um programa de combate ao trabalho escravo e tráfico de pessoas e de proteção ao trabalho migrante, dando origem a um comitê nacional dedicado ao tema. “A ideia é que cada um dos núcleos dos tribunais regionais consiga olhar para sua realidade local, pensando no aperfeiçoamento da jurisdição, das barreiras de acesso à Justiça que essa população enfrenta, e olhar para fora, com a formação de uma rede, realização de campanhas e de eventos”, explica Gabriela Lenz de Lacerda, juíza-auxiliar da presidência do TST. Segundo Carla Gomes, juíza do TRT da 3ª região em Minas Gerais, a condição de vulnerabilidade de muitos refugiados facilita o trabalho precário. “Muitas vezes eles são intermediados por outros e vão trabalhar em fazendas, plantações de café, de cana-de-açúcar, e têm a retenção dos documentos”, denuncia Gomes, autora da tese Abordagens Etnográficas sobre Pessoas em Situação de Refúgio e Inserção Laboral.
Fonte: DataMigra. Observatório das Migrações Internacionais (UnB).
A ONG Planeta de Todos, que abriga Gholami e outros afegãos, desenvolve programas voltados para a formação e preparação de refugiados para o mercado de trabalho. Além do acolhimento, a entidade, que também atua na Itália e na Grécia, oferece curso de Português e dá orientação de como preparar currículos e até se portar numa entrevista de emprego. “A gente lida com uma população que vem de uma cultura muito diferente, na gastronomia, na música e nas inter-relações. O mercado de trabalho é um grande entrave para eles, que não têm muita noção do que é fazer um currículo, uma carta de motivação, como é enfrentar uma entrevista. Nosso trabalho é fazer com que entendam onde estão, fazendo esse leque de integração social, cultural e laboral. São ferramentas sociais a que eles nunca tiveram acesso”, descreve André Naddeo, diretor-executivo da ONG. O ativista comemora a recente contratação de dois refugiados por uma fábrica de peças automotivas em Ribeirão Preto.
A fintech popular Mais Todos iniciou um processo de recrutamento de refugiados para trabalhar na empresa e pretende, no segundo semestre deste ano, contratar de quatro a sete novos funcionários, todos refugiados. “A gente desenvolve um trabalho para entender a vocação deles e o que eles buscam para, então, conseguir conciliar com o interesse da empresa. Acreditamos muito que esse projeto vai ser uma troca muito rica dos dois lados”, destaca Vinícius Arruda, vice-presidente da fintech.
O governo Lula desenha uma política nacional de integração dos refugiados
Natália Simões cita o despreparo das instituições públicas no atendimento a essa população. “A gente recebe muitas queixas de falta de abrigo, que, às vezes, não são suficientes para a quantidade de refugiados. O outro grande problema é a questão do Bolsa Família. Eles fazem o pedido, se cadastram no Centro de Assistência Social, mas, como o protocolo de refúgio é só um número, é comum que, na Caixa Econômica, quando vão dar entrada no pedido, o funcionário não entende que aquele número é um documento, dificultando a liberação do auxílio.” Castro salienta: “O problema das políticas públicas também alcança os refugiados, só que para eles a dificuldade é ainda maior, pois há uma barreira linguística grande. Essa falta de política de manutenção e da dignidade dos refugiados é muito triste e leva, às vezes, à desistência de ter o Brasil como destino final”. O histórico racista de muitos brasileiros, acrescenta, também afasta. “Um refugiado do Leste Europeu, loiro, de olhos azuis, terá uma vida absolutamente diferente daquela do refugiado que vem dos países da África Subsaariana, do Haiti, de uma população preta. O racismo brasileiro, um dos mais terríveis do mundo, torna conflituosa a relação do refugiado branco e do refugiado não branco.”
O governo Lula promete estabelecer, até o fim do mandato, uma política pública nacional para os migrantes, com atenção especial aos refugiados. “O Brasil é um país com uma população vulnerável muito grande e os migrantes, às vezes, se somam a esse contingente”, diz Ana Maria Raietparvar, coordenadora-geral substituta de Promoção dos Direitos das Pessoas Migrantes, Refugiadas e Apátridas do Ministério de Direitos Humanos. No campo da educação, algumas universidades federais oferecem cursos de Língua Portuguesa e outras instituições, como a UnB, suspenderam a taxa cobrada para a revalidação do diploma, queixa frequente dos refugiados com nível superior.
Escravidão. Operação policial que libertou bolivianos de uma fábrica em São Paulo – Imagem: Polícia Cívil/GOVSP
O Ministério de Direitos Humanos acaba de firmar um convênio com a Universidade Federal Fluminense e deve começar, ainda neste ano, a oferecer um curso de especialização online para formar professores de Português como língua de acolhimento. Serão 150 vagas em seis polos do Brasil: Roraima, Acre, Mato Grosso do Sul, Paraná, São Paulo e João Pessoa. Segundo Raietparvar, a ideia é formar multiplicadores que vão criar pequenos cursos informais para atender a população migrante. O ministério também investe na participação social dessa população. Em abril foi lançado o Fórum Nacional de Lideranças Migrantes, que conta com cerca de 200 representantes, a maioria na condição de refúgio, de mais de 20 nacionalidades. Comemorado em 20 de junho, o Dia do Refugiado deve ser lembrado por diversas organizações da sociedade civil. •
Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.
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