

Opinião
As iniquidades na enfermagem brasileira exigem reparações
A lógica empresarial vem solapando a estrutura da maior política pública do estado brasileiro, criando anômalas estratégias para transformar o piso em teto salarial


No período compreendido entre 12 e 20 de maio foi comemorada a Semana de Enfermagem no Brasil. Apesar de ser uma referência para a realização de eventos técnicos científicos para os profissionais da área, há anos vem se conformando como um período de reafirmação das lutas históricas da categoria. Dentre estas lutas, têm destaque a definição do Piso Salarial dos profissionais. Há cerca de um ano, depois de muitas negociações e retrocessos foi sancionada a lei, porém desatrelada da jornada de 30 horas semanais.
Ao longo deste ano, o que seria o desfrute da sonhada conquista da maior força de trabalho do setor saúde, foi se tornando um verdadeiro pesadelo para muitos profissionais em muitos municípios no país. A lógica empresarial que vem solapando a estrutura da maior política pública do estado brasileiro, mantém-se insensível, indiferente aos ditames da lei, criando anômalas estratégias para negar o piso, transformando-o em teto salarial.
Atrelada a essa lógica forjada, a enfermagem vem sendo submetida a uma avassaladora precarização dos contratos de trabalho, com perda de direitos trabalhistas, até desresponsabilização do empregador em fornecer os equipamentos de proteção individual. Faz parte dessa conjuntura o subdimensionamento do quadros de pessoal dos serviços de saúde, particularmente no setor público, que desde a pandemia, não definiu políticas robustas de reposição de pessoal, e nem oportunizou momentos de respiro, de alguma leveza na dinâmica do trabalho diante nos subsequentes ciclos de adoecimento e envelhecimento da população brasileira nos últimos anos.
Esse é o quadro universal da enfermagem no país, contudo quando analisamos o seu interior, identificamos marcadores sociais que articulados, interseccionados, tornam a condição de existência de alguns grupos ainda mais desigual e injusta. Nos reportaremos daqui em diante ao grupo majoritário da enfermagem brasileira, as mulheres negras, que ao longo de mais de um século, vem sendo invisibilizadas nos materiais publicitários, nas trajetórias profissionais, nos postos de comando, nas instituições de ensino, na produção de saberes. Decisões políticas do começo do século passado, baseadas nas teorias científicas e na eugenia, impediram o ingresso dessas mulheres e homens no processo de profissionalização da enfermagem. A ausência de políticas públicas reparatórias até os dias de hoje, retém ¾ da força de trabalho da categoria no nível médio das ocupações, normalizando a condição histórica de estratificação social e racial.
Para além da estratificação social que impacta nas escolhas dessas mulheres, há de se reconhecer constantes atos de discriminação, preterimento nos processos seletivos dos serviços de saúde, majoritariamente terceirizados, que impedem homens e mulheres o acesso ao trabalho, assim como igual manejo nos processos de desenvolvimento de carreira, evidenciados na publicação da sondagem sobre Racismo na Enfermagem realizada em parceria com o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo
Em maio de 2023, a Articulação Nacional de Enfermagem Negra – ANEN, protocolou junto aos Ministérios da Saúde, da Igualdade Racial, dos Direitos Humanos, das Mulheres, Dossiês específicos, que descrevem de forma pormenorizada, o impacto desses processos históricos na vida e na saúde dos profissionais negros da enfermagem. Decorrido um ano, mesmo considerando o protagonismo dessa organização, ainda não temos respostas às iniquidades relatadas. Permanecemos em luta, perfilados em prontidão, para discorrer sobre os rumos das nossas vidas, uma vez que somos os maiores interessados nas mudanças necessárias para a produção de equidade e reparação, compromissos do Estado brasileiro e da gestão pública do SUS:
“Chamo a atenção para as iniquidades persistentes presentes na área a enfermagem, o maior contingente do SUS […]. Hoje o cenário de terceirização do SUS acarreta desproteção à saúde dessas trabalhadoras, profundo desgaste e assédio nos processos de trabalho, […] ausência de uma gestão da carreira tendo por norte o princípio da equidade e reparação, e processos de trabalho dignos, livres de violências e discriminações de acesso e garantia de direitos” Profa. Isabela Pinto Secretária da Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde – MS 2024
Reconhecemos iniciativas governamentais como a Portaria GM/MS 230/2023 que institui o Programa de Equidade de Gênero, Raça e Valorização das Trabalhadoras do SUS, contudo queremos participar, colaborar para a construção de proposições, interministeriais, que produzam equidade nas relações do trabalho e da educação no sistema de saúde.
Quando analisamos o perfil das populações branca e negra no mercado de trabalho, requeremos a intervenção do Estado para garantir a igualdade de acesso ao trabalho visto que, 136 anos após a abolição da escravatura no país, a condição laboral dos negros configura violação de direito constitucional. Uma vez assegurada a garantia do acesso ao trabalho e a permanência, defendemos a igualdade de remuneração entre homens e mulheres.
Requeremos responsabilização institucional e profissional asseguradas por medidas protetivas aos trabalhadores vitimados por atos de racismo, discriminação e violência no ambiente de trabalho, visto o reconhecimento legal de que Racismo é crime e é determinante de adoecimento e morte.
Por fim, defendemos a gestão pública do sistema de saúde no país e o acesso dos profissionais mediante concurso público. Até que essas decisões se concretizem, será necessária a definição de diretrizes de gestão pública dos serviços de saúde, de forma a garantir igualdade de acesso aos trabalhadores, enfrentamento aos atos de discriminação de qualquer origem, prevenção, proteção e acolhimento às situações de violências no ambiente de trabalho.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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