Mundo
O outro refém
Pressionado internamente, Biden propõe um cessar-fogo, mas é incapaz de impor a medida ao governo de Israel


O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, parece, enfim, ter percebido o óbvio. Em entrevista à revista Time, o democrata, pressionado em plena campanha à reeleição, afirmou, de forma comedida e sinuosa, haver “todos os motivos” para se concluir que o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, prolonga a operação militar na Faixa de Gaza para se manter no poder. Biden defendeu ainda a criação do Estado Palestino, proposta rejeitada por Tel-Aviv. “É preciso uma transição para uma solução de dois Estados”, disse aos entrevistadores. “E esse é o meu maior desacordo com Bibi. Penso que há um caminho claro para uma transição em que todos os países árabes forneceriam segurança e cuidariam da reconstrução em Gaza em troca de um período mais longo, um compromisso de longo prazo por parte de Israel para uma solução de dois Estados.”
Após meses de apoio incondicional ao massacre dos palestinos, seja por meio do envio de armas a Israel, seja pelo bloqueio a qualquer tentativa de pôr fim ao ataque, as palavras e as ações de Biden produzem, a esta altura, pouco ou nenhum efeito sobre Netanyahu. Desde a sexta-feira 31, quando o presidente norte-americano apresentou um plano de trégua dividido em três etapas e deu a entender que Tel-Aviv aceitava os termos, o primeiro-ministro israelense tem se esforçado para desmentir o aliado. “As alegações de que concordamos com um cessar-fogo sem o cumprimento de nossas condições são incorretas”, declarou na segunda-feira 3, para constrangimento da diplomacia dos EUA. “O contexto para acabar com a guerra não mudou: a destruição do Hamas e das suas capacidades militares, a libertação de todos os reféns e a garantia de que Gaza não será uma ameaça para Israel.”
Netanyahu recusa-se a cessar o massacre antes do “fim” do Hamas
Além da pressão direta, os Estados Unidos recorreram ao Conselho de Segurança das Nações Unidas em busca de apoio à proposta. Netanyahu, por sua vez, mostra-se mais sensível à opinião da ala extremista de seu gabinete do que aos apelos das famílias dos reféns em poder do Hamas e dos acenos do centro-esquerda, disposto a sustentá-lo no governo por alguns meses, caso venha a aceitar os termos anunciados por Washington. Dois influentes ministros de extrema-direita foram claros: se ceder a Biden, Bibi perderá a sustentação que tem prolongado sua permanência no comando do país. “Se o primeiro-ministro implementar o acordo imprudente nas condições publicadas, que significam o fim da guerra e a desistência da eliminação do Hamas, vamos dissolver o governo”, ameaçou Itamar Ben Gvir, da Segurança Nacional. Os combates devem continuar, reforçou Bezalel Stromich, titular da pasta de Finanças, “até a destruição” dos inimigos.
O plano Biden prevê três etapas. Na primeira, um cessar-fogo de seis semanas serviria para Israel e o Hamas negociarem os pontos do fim permanente do conflito e para ampliar o fluxo da ajuda humanitária a Gaza. Na segunda, o grupo armado palestino devolveria os reféns em troca da retirada das tropas israelitas da região. Por fim, seria posto em prática um plano de reconstrução monitorado pelos países árabes. “Todos os que desejam a paz agora devem levantar a voz e trabalhar para torná-la real. É hora de esta guerra acabar”, conclamou Biden ao anunciar a proposta.
Urgência. A proposta de cessar-fogo permitiria a regularização da ajuda humanitária aos palestinos – Imagem: Eyad Baba/AFP
Neste momento, o democrata é o único a demonstrar pressa em encerrar o conflito. O aval à violência desmedida israelense pode custar-lhe a reeleição. A seis meses da disputa presidencial, as últimas pesquisas apontam vantagem de Donald Trump nos estados decisivos. A repressão aos protestos nas universidades em favor do cessar-fogo e a censura interna imposta aos críticos do massacre afastaram ainda mais o eleitorado jovem do atual presidente – sem ele, as chances de vitória se reduzem de forma dramática. Netanyahu, ao contrário, vive um momento de certa tranquilidade. A sugestão de Karim Khan, procurador-geral do Tribunal Penal Internacional, de emissão de uma ordem de prisão contra o premier israelense por crimes de guerra e crime contra a humanidade, deu a Bibi a chance de se vitimizar. Parcela significativa dos israelenses interpretou o parecer de Khan como sinal de antissemitismo. Resultado: a popularidade do governo e do Likud, partido de Netanyahu, subiu pela primeira vez em oito meses. Parte da população protesta nas ruas não por estar horrorizada com a matança em Gaza, mas pela demora em trazer os reféns para casa ou por não terem a certeza de que as Forças Armadas serão capazes de cumprir a promessa de eliminar o Hamas. Muitos defendem abertamente a aniquilação dos “inimigos”. São comuns os relatos na mídia como este de Yarin Sultan, de 31 anos, moradora de Sderot, na fronteira de Gaza, à BBC: “O cessar-fogo vai nos matar. Vamos libertar os nossos, mas daqui a alguns anos vocês serão os próximos reféns, os próximos a serem assassinados, as próximas mulheres a serem violadas. Tudo vai acontecer de novo”.
Bibi explora esse sentimento. Na terça-feira 4, em mais uma jogada de propaganda para esvaziar a proposta norte-americana, o governo anunciou a morte de mais quatro reféns em poder do Hamas. Calcula-se que 80 dos 123 civis israelitas mantidos em território palestino estejam vivos. No mesmo dia, as tropas israelenses atacaram um campo de refugiados na área central de Gaza e deixaram um saldo de ao menos 75 mortos. Ninguém minimamente informado acredita na probabilidade de o Hamas ser aniquilado – dure o quanto durar a ocupação militar. Embora o número de palestinos mortos tenha passado da casa dos 36 mil, apenas 35% dos integrantes do grupo armado foram eliminados até agora, segundo informações dos serviços de inteligência dos EUA. Ou seja, Netanyahu tem uma boa razão, ou desculpa, para manter as coisas como estão. Não só. Uma vitória de Trump em novembro facilitaria a operação de extermínio em curso. •
Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O outro refém ‘
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