Economia
O BC tem dono
O consórcio mercado-mídia age para condicionar a escolha do novo presidente da instituição


Com a ansiedade elevada pela perspectiva de substituição, em dezembro, do presidente e de parte da diretoria do Banco Central, que passaria a ter uma maioria indicada pelo presidente Lula, e de olho nas eleições municipais em outubro, uma preocupação com desdobramento no pleito presidencial de 2026, o consórcio mercado financeiro-mídia não quer nem ouvir falar de novas reduções das taxas de juro neste ano. Sensibilidade monetária à flor da pele, a turma range os dentes e emite declarações histéricas diante de qualquer flutuação da inflação, mesmo nos casos de variações mínimas, exibidas como um atestado de que a Selic não pode baixar. O truque visa distrair a atenção do público para proteger preventivamente os rendimentos generosos proporcionados pela maior taxa de juros real do mundo, instrumento principal utilizado pelo BC no combate à inflação, mesmo nas situações em que esta não é a medida adequada.
Faz parte do jogo de cartas marcadas minimizar notícias positivas sobre a economia, e nenhuma delas parece boa o suficiente para reduzir o pessimismo sob medida, inabalável, dos fazedores de dinheiro. A meta estratégica é enfraquecer o governo Lula, para aumentar as chances de escolha de um presidente do BC amigo do mercado e conquistar uma posição política o mais favorável possível para o sistema financeiro nas disputas eleitorais. Ou, no mínimo, constranger de antemão o nome mais cotado para substituir Roberto Campos Neto no comando da instituição, o economista Gabriel Galípolo, nomeado diretor de Política Monetária do banco em julho do ano passado e ex-secretário-executivo do Ministério da Fazenda.
Como Roberto Campos Neto não será reconduzido, o objetivo é constranger de antemão o substituto
A antecipação do debate sobre a escolha do novo presidente do BC ocorreu no começo de abril, por iniciativa espantosa do próprio Campos Neto. O mesmo que, semanas atrás, em pronunciamento extraoficial e extemporâneo, durante evento privado da XP, em Nova York, alardeou a tendência de desaceleração do ritmo da diminuição da taxa Selic a cada reunião do Copom, antes definido em meio ponto porcentual pelo conjunto da diretoria do BC, para 0,25. Ao fulminar de modo monocrático a diretriz da redução dos juros, Campos Neto elevou o chamado risco institucional, mas como o sistema financeiro o reconhece como legítimo representante público dos seus interesses privados, traduziu a iniciativa em elevações das projeções para inflação e das taxas. Como justificativa do seu rompante em Nova York, o presidente do BC mencionou o aumento dos riscos, internos e externos. Os riscos existem, mas, como se verá adiante, não parecem justificar a onda de reajustes de previsões realizada pelo mercado, que resultará em bilhões e bilhões em ganhos adicionais às instituições financeiras e aos rentistas.
Exemplo de esmero no uso da estratégia alarmista descrita foi a entrevista concedida à Folha de S.Paulo por Arminio Fraga, ex-presidente do Banco Central e ex-funcionário de George Soros, na quinta-feira 27. Fraga apontou o risco de a inflação subir e o mercado perder a confiança no caso de o indicado por Lula para a presidência do BC “se meter a besta”, isto é, se reduzir os juros, o que abriria caminho para um grande e rápido “fiasco político” (sobre as declarações do ex-presidente do BC, leia o artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo, à página 16). O alerta, recado ou ameaça de Fraga soma-se à profusão de editoriais, artigos, notas e fofocas publicados pela mídia nas últimas semanas a respeito da inflação, dos juros e do risco fiscal, em um período também marcado por derrotas do governo no Congresso. “O objetivo imediato é garantir o controle sobre o BC e o objetivo de médio prazo é enfraquecer o governo para ele ser ou derrotado em 2026, na melhor das hipóteses para eles, ou mais influenciável pela agenda neoliberal. E um jogo transparente, visto várias vezes, é a maneira como a elite do atraso procura manter o País sob seu controle, independentemente dos resultados das eleições”, dispara o economista Paulo Nogueira Batista Jr., colunista desta revista.
Está em ação um lobby articulado, prossegue, que inclui o mercado financeiro, a mídia corporativa e políticos, os quais atuam de maneira conjugada. O propósito é inibir o governo, Lula e Haddad, na escolha do presidente do Banco Central. Além de Campos Neto, concluem o mandato em dezembro dois diretores, Carolina de Assis Barros, de Administração, e Otávio Ribeiro Damaso, de Regulação. O BC passará então a ter a maioria dos dirigentes indicados pelo atual governo. Hoje, a maior parte da diretoria é remanescente da era Bolsonaro, que promulgou a independência da instituição em 2021 e estabeleceu mandatos de quatro anos não coincidentes com aquele do presidente da República.
Galípolo está previamente avisado. Ai dele se se “meter a besta” – Imagem: Alessandro Dantas/PT no Senado
“O que eles querem”, prossegue Batista Jr., “é que a escolha para a presidência do BC recaia de preferência sobre um homem deles, um alto funcionário do sistema financeiro. Não podendo ser isso, aceitam alguém domesticável. Portanto, esse barulho todo, a entrevista de Arminio Fraga inclusive, é um exemplo disso, é para dizer ao governo: ‘Cuidado, não vá nos desagradar nessa escolha estratégica’.”
A preocupação foi reforçada com os embates que antecederam a última reunião do Copom, com o placar da votação de 5 a 4 a favor da proposta do presidente do BC, de frear a redução da taxa de juros. A divisão sinalizou ao mercado como poderá ser a nova direção do banco quando Campos Neto não estiver mais disponível para cumprir as diretrizes da Faria Lima. “É mais essa terceira via, que é uma coisa velhíssima, muito antiga, remonta, no mínimo, à UDN”, ressalta Batista Jr. A UDN, cabe acrescentar, nasceu em 1945 para combater o desenvolvimento do País iniciado por Getúlio Vargas. Defendia o liberalismo clássico, a moralidade, e fazia forte oposição às reivindicações da população pobre, além de defender a abertura incondicional da economia ao capital estrangeiro. “É evidente que essa terceira via está se posicionando para as disputas eleitorais. As deste ano, que estão aí na boca, e a de 2026, que é a mais importante. Eles se deram conta de que Lula é candidato e estão querendo dificultar a vida dele e, se possível, derrotá-lo”, sublinha o economista.
A operação do mercado passa pelo reconhecimento de que o único fato novo na política, no Brasil e em outros países, nos últimos dez anos, é a ascensão da extrema-direita. Ela é um elemento novo, no País e fora dele, por mostrar potencial eleitoral e um radicalismo na área cultural e econômica. E é competitiva. A direita tradicional tende, segundo o economista, a submergir. Os partidos dessa corrente desaparecem, seja porque são engolidos pelos partidos de extrema-direita, seja porque a extrema-direita se infiltra nos partidos da direita tradicional e toma conta, caso dos republicanos nos Estados Unidos e dos conservadores no Reino Unido. No Brasil, o que aconteceu foi o virtual desaparecimento dos partidos que representavam a terceira via, do PSDB notadamente.
Há um componente político: a “terceira via” tenta reorganizar-se para as eleições de 2026
“O que eles estão tentando agora, se possível, como mostra a entrevista de Arminio Fraga, que é politiqueira, claramente, não é uma entrevista de economia, é uma terceira via. Não sendo possível uma terceira via, pretendem encontrar outro caminho.” Esse outro caminho, prossegue, se configura de maneira escancarada e consiste na organização de “uma nova Arca de Noé pela direita”, em torno de uma frente ampla que incluiria a extrema-direita e ao menos a maior parte da direita tradicional, para, caso não seja viável a terceira via, ter-se uma Arca de Noé de direita.
Se não for possível isso, eles vão botar fichas também na “Arca de Noé de Lula”, só que, nesse caso, tentarão enfraquecer ao máximo o presidente agora, para que ele entre na negociação fragilizado, precisando muito da terceira via. “O que eles não querem é que ele chegue em 2026 como chegou em 2010. Ganhou em 2002, disputou a reeleição e em 2010 nadou de braçada com Dilma, indicada por ele. Querem evitar que Lula chegue em 2026 forte, em condições de reduzir o papel da terceira via em uma nova Arca de Noé.” Nessa configuração, nomes como Arminio Fraga, e vários outros, prossegue, “têm o papel de dar uma vestimenta econômica a um projeto político. E Lula que se cuide, porque, hoje em dia, não é exagero dizer que o governo está acossado simultaneamente por vários lados. No Congresso, na mídia corporativa e no mercado financeiro”.
Acrescente-se a oposição interna ao seu próprio espectro político, com ministros e outros ocupantes de cargos de partidos aliados que não resultam em aumento do placar do governo nas votações no Congresso, e dificuldades como a greve de várias categorias de funcionários públicos. “A base tradicional de Lula está em queda”, destaca Batista Jr. E o governo está um pouco paralisado pela presença importante de representantes da terceira via em postos relevantes, como consequência da Arca de Noé. Não é só o BC, que ainda está sob o comando de um indicado por Bolsonaro. O Ministério do Planejamento inteiro, o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio também está quase totalmente ocupado por gente com a ideologia neoliberal, e mesmo na Fazenda há representantes dessa agenda”. Mais: “Se dependesse dessa gente, nós voltaríamos ao Consenso de Washington, à agenda neoliberal, que está morta e enterrada nos Estados Unidos e na Europa, mas continua a ter uma sobrevida por aqui. Porque, aqui, o pessoal não se renova, continua com as mesmas teses mofadas que prevaleceram no fim do século XX, início do século XXI”.
O Fundo Monetário Internacional vê perspectivas melhores para a economia. Há melhoras na renda e no consumo – Imagem: Cory Hancock/FMI e Cláudio Vieira/PMSCJ
Notícias econômicas boas não faltam, entretanto, a começar pelo aumento de 0,8% do PIB no primeiro trimestre, em comparação com o trimestre anterior, acima das previsões do mercado. Os fatores que mais contribuíram para o dinamismo da economia foram a continuidade do mercado de trabalho aquecido, com a criação de 730,8 mil novas vagas de emprego formal, bem acima dos 520,3 mil postos criados no mesmo período no ano passado, o aumento real do salário mínimo e seu impacto sobre os benefícios sociais e previdenciários, a ampliação da massa salarial em 10,4% em termos reais, o aumento do consumo e, em especial, o bom desempenho dos investimentos, com avanço de 4,1% no período, influenciado pela retomada da produção de bens de capital, favorecida pela melhora das expectativas dos empresários, segundo a Federação das Indústrias de São Paulo.
O acompanhamento da Fiesp mostra que a indústria de transformação voltou a crescer no primeiro trimestre deste ano, com avanço de 0,7%, mas “a taxa Selic terminal mais alta é fator de risco para a continuidade do processo de recuperação do setor”. “O Brasil faz milagre, queria ver os Estados Unidos crescerem com juros de 10% a 12% ao ano”, disparou Paulo Gala, economista-chefe do Banco Master, em comunicado a propósito da expansão do PIB. Gala destacou como “notícia muito boa”, nessa evolução, o aumento do investimento, que gera capacidade produtiva na economia, o que permitirá um Produto Interno Bruto maior no futuro. “O Brasil está meio heroico, conseguiu crescer quase 3% ao ano nos últimos dois a três anos, com esses juros gigantescos”, acrescentou.
Divulgado pouco antes da notícia acerca do desempenho do PIB, o relatório do Fundo Monetário Internacional sobre o Brasil, elaborado após visita de missão regular de acompanhamento técnico, contém um diagnóstico muito favorável a respeito da situação da economia e da política econômica. O relato dos técnicos, registrado sem destaque pela mídia local, apesar de o FMI ser a principal instituição norteadora das políticas econômicas liberais e neoliberais no mundo, afirma que o País, nos últimos anos, demonstrou “notável resiliência, à medida que a inflação caiu para dentro do intervalo da meta”. O corpo técnico do Fundo espera que o crescimento modere no curto prazo antes de se fortalecer para 2,5% no médio prazo, uma revisão para cima, em face dos 2% registrados na visita anterior da instituição, em 2023. O relatório ressalta “o ritmo cuidadoso da flexibilização monetária, apropriado e consistente”, indica “satisfação com o compromisso das autoridades em continuar a melhorar a posição fiscal do Brasil” e a “eliminação das despesas fiscais ineficientes, o alargamento da base tributária e o combate à rigidez da despesa”. Não por acaso, todas as agências de rating têm melhorado a nota de risco de crédito do País.
No Senado, está pronta a proposta que amplia a autonomia do Banco Central
No plano internacional, o FMI, acompanhado da OCDE e da Unctad, vê uma melhora discreta da economia global, que se mostrou resiliente durante a desinflação de 2022 e 2023. As agências projetam um “pouso suave”, apesar dos juros mais elevados para combater a alta de preços e da resistência da própria inflação.
Apesar dos vários indicadores positivos relevantes, a articulação mercado-mídia segue infatigável, apoiada em razões estruturais, aponta André Roncaglia, professor de Economia da Unifesp. Os meios de comunicação, em causa própria, se interessam pela agenda que defende a redução da tributação e os cortes de gastos públicos, para garantir o equilíbrio fiscal. O alinhamento entre a sobrevivência e a lucratividade desses veículos e uma agenda de austeridade é quase automático. Outro fator que pesa é a identificação com os interesses dos anunciantes. Para mantê-los, o veículo tentará preservar um certo viés em defesa dessa mesma agenda que os beneficia.
Um terceiro elemento vem do fato de as fontes consultadas pelos jornalistas serem majoritariamente experts cujos salários dependem do avanço de uma agenda de austeridade. São os economistas da Faria Lima, ou de empresas e de institutos privados. “Os economistas são formados, majoritariamente, dentro de uma perspectiva em que o mercado tem a primazia na regulação da economia. Essa ideologia se traduz na ênfase em determinados tópicos, que são particularmente de curto prazo. As questões da política fiscal com viés de austeridade, e da política monetária também com esse viés, são exemplos”, sublinha Roncaglia.
A indústria mostra certa resiliência. O Congresso se prepara para atender à encomenda do mercado e ampliar a autonomia do Banco Central – Imagem: Zeca Ribeiro/Ag. Câmara e Ari Dias/AEN/GOVPR
Entre as causas do alinhamento da mídia ao mercado há a questão ideológica, inescapável por estar no ambiente econômico. “Vivemos um modelo neoliberal de governança econômica, e aqui não falo de governo, mas de governança, que é a relação entre Estado, mercado e sociedade civil. Esse modelo ainda é dominantemente neoliberal, embora esteja em crise. Mas a hegemonia da governança ainda não transitou. Ela está nessa situação de crise do neoliberalismo, mas define a maneira como o sistema opera, e isso afeta tremendamente os jornalistas, cujo horizonte de análise é muito curto”, ressalta o professor.
Outro aspecto a considerar, nessa relação entre jornalistas e economistas, é que a disponibilidade de economistas para falar com a imprensa é assimetricamente maior nas instituições financeiras da Faria Lima ou associadas a interesses financeiros. Bancos, gestoras de recursos e corretoras têm equipes de economistas que ficam essencialmente à disposição da imprensa. Em contrapartida, economistas que integram universidades e institutos de pesquisa costumam ter pouca disponibilidade ou simplesmente são ignorados como fontes de informação.
Não satisfeitos, os donos do dinheiro patrocinam no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional para aprofundar a “independência” do Banco Central. A PEC estabelece a autonomia financeira e administrativa à instituição e tem como relator o senador Plínio Valério, do PSDB do Maranhão. A ideia conta com o entusiasmado apoio de Campos Neto. O Sinal, sindicato dos funcionários do BC, é contrário à proposta, assim como a Advocacia-Geral da União. Em carta, os sindicalistas alertam para os riscos de descoordenação da política monetária no futuro. “Não há como ignorar sua condição de instituição típica de Estado, incompatível com a sua transformação em empresa pública”, afirma o texto. O relatório de Valério entrará em pauta nos próximos dias. •
Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O BC tem dono’
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