Política
A galinha dos ovos de ouro
A destruição do Cerrado coloca em perigo a própria produção de soja, raiz do desmatamento


O Cerrado registrou no ano passado um desmatamento de 11.103,26 quilômetros quadrados, aumento de 67,7% com relação a 2022. A área desmatada equivale a dez cidades do Rio de Janeiro. Pela primeira vez, desde o início da série histórica, em 2019, o bioma ultrapassou a Amazônia em termos de área desmatada. Esse quadro preocupante não tem relação com a dificuldade de proteção do Cerrado. Até mesmo no centro do poder, o Distrito Federal, o aumento do desmatamento foi de 612%.
Mesmo com esse enorme prejuízo às florestas, o governo federal comemorou a expansão do PIB, gerada principalmente pela exploração extensiva e ilegal do Cerrado, em sua vertente do Matopiba. Isso nos faz refletir sobre a ineficácia do PIB como indicador de riqueza nacional. Quando a degradação ambiental não é contabilizada como perda de capital natural, não se leva em conta a riqueza ecossistêmica que confere sustentabilidade aos territórios e representa garantia para a atual e a futura produção de alimentos.
Ao contrário da máxima “a ganância é boa”, na exploração do meio ambiente a “ganância é péssima”. A destruição do Cerrado faz lembrar a fábula da galinha dos ovos de ouro. O fazendeiro ambicioso, não contente com a produção natural de um ovo por dia, supondo que havia uma grande quantidade de ouro dentro da galinha, sacrifica o animal – e se arrepende amargamente.
No Matopiba, a extração da água para irrigação é feita em poços de profundidade, em maior quantidade do que a sua capacidade de recarga. A atividade ameaça de blecaute hídrico mais de 300 cidades da região. As alterações do clima apresentam aquecimento cada vez mais intenso. O microclima local, alterado por desmatamentos, acelera os processos de desertificação, o que torna a região cada vez mais seca e com menores condições para a produção agrícola.
A maior riqueza natural do Cerrado encontra-se no solo, nas profundas e extensas raízes que permitem às suas árvores sobreviver às secas e reter carbono. A vegetação natural é considerada uma “floresta de cabeça para baixo”, com característica de gigantesco sumidouro de carbono, mantendo enterrados no solo cerca de cinco vezes mais CO2 do que acima da superfície.
Ao conferirmos os dados da riqueza natural dessa savana brasileira, com imensa extensão de campos com árvores isoladas, bosques esparsos, campos e riachos, vamos encontrar biodiversidade surpreendente, com mais de 11 mil espécies de plantas, 860 espécies de aves e abundante fauna.
A destruição dessa região pela agricultura ambiciosa tem como uma das principais causas a produção de soja para exportação. Essa commodity é maciçamente destinada ao suprimento de ração animal na China. Entre 2019 e 2023, as exportações de soja brasileira para os chineses quase dobraram, de 20,5 bilhões para 39,8 bilhões de dólares. No ano passado, a China foi responsável por consumir nada menos que 73% do total da soja exportada pelo Brasil.
O jornalista André Borges realizou pesquisas e colheu depoimentos para delinear cenários futuros, mapeando as tendências político-ambientais da China. Entre os levantamentos, percebe-se que o país começa a demonstrar preocupação com sua forte dependência de compra da soja brasileira, que estrategicamente supre a cadeia alimentar de boa parte de seu 1,4 bilhão de habitantes. O diretor do Centro Internacional para o Desenvolvimento Agrícola e Rural da China, Kevin Chen, afirmou: “Sabemos que as mudanças climáticas já levaram a uma redução na produção de soja no Brasil e, também, a uma diminuição nas exportações”. Ele complementa: “É preciso acabar com o desmatamento no Brasil, devido à expansão da produção de soja e carne bovina. Esperamos que isso ocorra, sem prejudicar a produção e os meios de subsistência”.
João Cumarú, mestrando em Política e Diplomacia Chinesa na Escola de Relações Internacionais e Assuntos Políticos da Fudan University, afirma que há avanços internos efetivos: “A questão ambiental é um tema mais recente da agenda pública da China, algo de 10 a 15 anos para cá, mas veja que isso passou a fazer parte do novo esforço do desenvolvimento pragmático. Depois de um intenso processo de industrialização e urbanização, a prioridade do presidente Xi Jinping passou a ser alcançar aquilo que tem sido chamado de construção de uma civilização ecológica”.
Os chineses, maiores compradores da commodity, estão mais sensíveis às questões ambientais
Outra vertente tem sido observada por fontes comerciais chinesas e pesquisadores da área ambiental: a regulamentação local, ainda embrionária, aponta para a restrição de compra de produtos de áreas desmatadas, como faz a União Europeia. Espera-se que essa restrição venha a prosperar rapidamente na China, considerando a capacidade daquele país em implementar transformações e políticas públicas, uma vez definidas pelo governo.
Para o Brasil, seria extremamente benéfico que a China reconsiderasse os malefícios dos agrotóxicos que exporta, às toneladas, para o Brasil. A construção da pretendida civilização ecológica certamente vai obrigar o expurgo dos produtos químicos banidos pela ciência médica em países que possuem maior preocupação ambiental, assim como a eliminação da queima volumosa de carvão e combustíveis fósseis.
Leonardo Gava, gerente-sênior de transição agrícola da Climate Bonds Initiative, do Reino Unido, afirma: “A China está migrando do papel de um comprador, que coloca mais pressão sobre o desmatamento, para um comprador que pode facilitar a existência de cadeias de valor livres de desmatamento”. Mais: “É um processo lento, mas em andamento. Essa pressão pela demanda chinesa, que empurrou a expansão da soja, do milho e outras culturas do Brasil, gerando muito desmatamento, está passando por um ponto de inflexão”.
Para os adeptos em sacrificar as galinhas dos ovos de ouro, o lucro que interessa é o imediato. Infelizmente, isso tem sido facilitado no Brasil, com a falta de implementação da legislação protetiva e em se manter a eficiência dos quadros de fiscalização, que continuam à míngua e em paralisação parcial, conforme relata o artigo “Abandono da Amazônia e dos fiscais ambientais”. Diz o texto: “Abandonar à própria sorte os fiscais do desmatamento é desproteger a natureza. Fazer contas rasas e defasadas sobre degradação ambiental é apenas greenwashing, muito ruim para o Brasil, ineficaz para conter as mudanças climáticas, péssimo para a sobrevivência da Floresta Amazônica e mortal para a sua biodiversidade”.
Será preciso restabelecer a ordem e a lei no Cerrado. Não se pode relegar ao futuro a tarefa de resolver as dificuldades geradas por esta geração, enquanto o capital predador simplesmente migra para outras paragens em busca de facilidades para exterminar novas galinhas dos ovos de ouro. •
*O autor é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A galinha dos ovos de ouro’
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