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A revolta esquecida

O movimento paulista de 1924 nunca teve o merecido espaço na historiografia nacional

A revolta esquecida
A revolta esquecida
O velho e o novo. Os revoltosos não conseguiram derrubar Bernardes. A mudança viria seis anos depois, com o Tenentismo – Imagem: Acervo Público de Minas Gerais, CPDOC/FGV e Gustavo Prugner/Arquivo Público do Estado de São Paulo
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No mês de julho, a Revolta Paulista de 1924, também chamada de “Revolta Esquecida”, completa 100 anos. Apesar de sua importância histórica e de ter marcado os rumos da política brasileira nos anos que se seguiram, o confronto entre as forças rebeldes de São Paulo e o exército nacional do presidente Artur Bernardes nunca teve o merecido espaço na historiografia do País.

A revolta das forças paulistas contra o governo do então presidente Artur Bernardes foi um dos maiores conflitos urbanos na América Latina. A capital do estado sofreu intensos bombardeios ­aéreos e terrestres, com um saldo de mais de 500 mortos entre militares e civis. Regiões como a Estação da Luz e o bairro da Mooca foram devastadas pelas bombas lançadas pelos aviões das forças legalistas fiéis a Bernardes.

Foram combates extremamente intensos. Pela primeira vez no País as armas utilizadas eram aquelas desenvolvidas na Primeira Guerra Mundial na Europa, com a tecnologia surgida e desenvolvida a partir das primeira e segunda revoluções industriais, muito mais letais que os armamentos empregados até então. Aviões, canhoneiras, metralhadoras e até um trem blindado fizeram parte dos arsenais, de ambos os lados, utilizados nos confrontos.

Foi também um episódio crucial para a formação da Coluna Prestes – ou, mais adequadamente chamada de Coluna Miguel Costa-Prestes, uma vez que resultou da união das forças paulistas lideradas por Miguel Costa com as do Sul, de Luiz Carlos Prestes.

Uma das primeiras manifestações da República contra o governo das oligarquias que regiam o País foi um movimento crítico aos privilégios destinados à elite agrária, às fraudes eleitorais e à corrupção na administração federal. Tinha ainda por objetivo a valorização e a reestruturação do Exército brasileiro. Por que então a Revolta Paulista de 1924 é tão pouco conhecida não só pelos próprios paulistas, mas também pelos brasileiros em geral? É possível especular que tal ausência de memória sobre acontecimento tão importante esteja na tradição conservadora da historiografia “oficial” em privilegiar a perspectiva dos vencedores. Os paulistas, assim como seus aliados de outras regiões, foram vencidos em sua intenção de derrubar Bernardes do poder.

Esta pode ser uma das hipóteses pelo “apagamento” da Revolta Paulista de 1924, mas não a única. Outra possibilidade de interpretação está no viés contestatório da rebelião ao poder estabelecido de então. Não é novidade que movimentos revolucionários protagonizados pelos “de baixo” na estrutura de classes da sociedade brasileira sejam postos em segundo plano, quando não “reinterpretados” conforme os interesses dos donos do poder. Revoltas como a de Canudos, a da Chibata, a Balaiada, o Contestado, a da Vacina e a de Palmares ainda aguardam por um lugar de maior destaque na história. Todos esses eventos, sem exceção, foram enfrentamentos à estrutura dominante de poder estabelecida, cada qual em sua época e com ­suas particularidades.

De qualquer forma, é imperioso que a Revolta Paulista de 1924 seja mais conhecida dos brasileiros, dados seus objetivos e suas características. Entre as idas e vindas dos confrontos, tomadas de posições e recuos de ambos os lados, a revolta contra a oligarquia política da época tem em seus anais dados bastante interessantes. Eventos tais como os batalhões formados por voluntários estrangeiros, recrutados entre as comunidades de imigrantes, principalmente alemães, húngaros e italianos. Ou a necessidade de arregimentar soldados, o que levou as forças rebeldes a oferecer pagamento adiantado e terras para aqueles dispostos a ir para os fronts.

A sublevação contra o governo Artur Bernardes foi crucial para a formação da Coluna Costa-Prestes

Tanto os rebeldes quanto os legalistas contaram com instruções e treinamento da experiência francesa adquirida na Primeira Guerra Mundial. A Missão Militar Francesa, resultado de um contrato, em 1919, entre Brasil e França para modernizar as Forças Armadas daqui, treinou militares de várias partes do ­País. Inclusive a rebelada Força Pública do estado de São Paulo.

Os bombardeios aéreos e também os ataques feitos pelos canhões dos legalistas levaram quase metade da população da cidade de São Paulo a buscar refúgio no interior. A revolta teve uma baixa participação popular, porque não havia interesse por parte do comando rebelde na presença de civis nas áreas de confrontos. Quando os paulistas deixaram a cidade numa estratégica retirada noturna, a armada legalista encontrou na manhã seguinte um território vazio, apenas com bonecos de palha vestidos com os uniformes nas trincheiras revolucionárias.

Entre as curiosidades da revolta estão a fabricação de unidades blindadas de guerra, feitas de maneira improvisada. Nas oficinas ferroviárias de São Paulo, com o apoio de estrangeiros, dois chassis de caminhões foram convertidos em carros blindados. Detalhe: nenhum foi utilizado, uma vez que ficaram pesados demais para se locomover adequadamente nas zonas de conflito. Um trem ganhou placas de blindagem, usado num ataque aos legalistas na estação de Vila Matilde. O recurso do veículo para combate impressionou e surpreendeu os legalistas, que haviam chegado há pouco do Rio de Janeiro.

A revolta dos paulistas chegou a ocupar São Paulo por três semanas, obrigando o governador Carlos de Campos a deixar a sede do governo, no centro da capital. Mas, vencido pelos legalistas, o confronto teve por saldo 505 mortos, 5 mil feridos e 10 mil presos.

Apesar do insucesso, a revolta foi um acontecimento fundamental na estruturação da Coluna Costa-Prestes, que chegou a contar com 6 mil integrantes e percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil até 1927. E nunca, de fato, foi derrotada.

Por conta da celebração desse fato histórico e em mais um esforço de recuperação da memória do País, foi programada para 7 de junho uma Sessão Solene dos 100 anos da Revolta Paulista de 1924 na Assembleia Legislativa de São Paulo. •


*Deputado estadual em São Paulo pelo PT.

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A revolta esquecida’

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