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Uma celebridade da era pós-mídia

Como, nesta época em que as pessoas passam os dias grudadas nos celulares, Taylor Swift transforma shows, discos e afirmações em eventos de massa

Uma celebridade da era pós-mídia
Uma celebridade da era pós-mídia
Midas. A Eras Tour, que passou pelo Brasil no fim de 2023, parece destinada a ser a de maior bilheteria de todos os tempos – Imagem: NRK P3/Norway
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Como escrever sobre a maior e mais discutida estrela da atualidade? Poderíamos seguir dicas da normalmente moderada revista New Yorker. Mas até eles, recentemente, levantaram as mãos e declararam que Taylor Swift está além das resenhas. E não porque os críticos pudessem se intimidar pelos Swifties, mas porque seu trabalho pode estar, oficialmente, além do bem e do mal.

Sinéad O’Sullivan afirmou na revista que Taylor está tão fora da norma pop que é inútil avaliar sua produção como meras canções: ela criou um universo próprio, no estilo Marvel, no qual abundam referências internas complexas. Taylor embarca em sua arte multiplataforma com conhecimento de causa, deixando um rastro de ovos de Páscoa, quebra-cabeças baseados em numerologia e jogos de xadrez em 3D. Como uma celebridade “pós-mídia”, ela não aprecia muito os intermediários e está, obviamente, além das entrevistas.

Em uma rara conversa com a revista ­Time, em 2023, quando foi eleita a Personalidade do Ano, ela tratou sua emotiva e inteligente campanha de regravação de álbuns para obter o controle de seus masters, os Taylor’s Versions, como uma missão mítica. “Estou colecionando pedras do infinito. A voz de Gandalf está na minha cabeça toda vez que lanço um novo master”, disse, referindo-se à série Harry Potter.

Neste universo, a exegese de Taylor é pesada e inclui notícias sobre seu mais recente marco na Swiftonomia; teorias de fãs partilhadas e dissecadas à velocidade da luz; e até cursos universitários e simpósios. Este é mais um artigo a ser jogado em uma pilha enorme, mas, ainda assim, vale a pena examinar o fenômeno de uma cantora e compositora que se tornou muito mais do que apenas isso.

A artista impacta financeiramente as cidades por onde passa e seus shows já foram registrados como terremotos na escala Richter

Seus fãs comemoram tão alto que, em duas ocasiões, no ano passado, seus ­shows foram registrados como terremotos na escala Richter nos Estados Unidos. Os aliados de Donald Trump ameaçaram travar uma “guerra santa” caso ela apoie Joe Biden para a Presidência dos Estados Unidos. “Ela é a maior gangsta do mundo da música no momento”, afirmou o rapper Drake, recentemente.

Uma série de estatísticas e recordes quebrados – como a maior transmissão online da história – confirmam o predomínio de Taylor. A Eras Tour, que passou pelo Brasil no fim de 2023, parece destinada a ser a de maior bilheteria de todos os tempos e mexeu as placas tectônicas financeiras de cidades inteiras.

O Barclays calculou que seus shows em Londres, entre este mês e agosto, podem render o equivalente a 7 bilhões de reais para a economia do Reino Unido. Nos Estados Unidos, ela tornou o futebol americano – o esporte mais popular do país – ainda mais popular. É que o seu namorado, Travis Kelce, joga no Kansas ­City Chiefs. Calcula-se que Taylor tenha gerado 1,8 bilhão de reais adicionais para a Liga Nacional de Futebol, entre 24 de setembro de 2023 e 22 de janeiro deste ano.

Também na política ela parece funcionar como impulsionadora. “Não posso comentar o que Taylor Swift está dizendo ou não”, disse um porta-voz da Casa Branca, sobre se a artista apoiará ­Biden este ano. Seria hilário, se o contexto não fosse tão carregado. A Fox News ­definiu-a como um “ativo psicológico do Pentágono” e os aliados de Trump a advertiram para ficar fora da política. Extraordinário é todos acreditarem que ela pode influenciar as eleições.

Ainda mais notável é o fato de Taylor Swift conseguir, ao mesmo tempo que impacta a geopolítica e a macroeconomia, cultivar uma capacidade de relacionamento inteligente e sensível. Ela é “sua melhor amiga bilionária”, como bem definiu Georgia Carroll, que falou no recente Swiftposium australiano.

Trata-se de uma estrela que ganhou dinheiro com suas composições, aproveitando a obsessão de seus fãs por consumir vários formatos de sua produção – e não diversificando seu portfólio em bebidas, maquiagem ou NFTs. Por seus intermináveis lançamentos de edições limitadas e produtos e por sua ética de trabalho infatigável, Taylor Swift já foi comparada ao modelo capitalista

O caráter de excepcionalidade de sua jornada está bem fundamentado tanto no talento quanto nas táticas. Embora domine nossa época, Taylor é, na verdade, uma artista antiquada, que teria sido uma ótima libretista da Broadway. Ao contrário de grande parte do pop moderno, suas canções contam uma história, de maneira sucinta e emotiva, aproximando-se, muitas vezes, do legado de seus primórdios no country.

Daddy I Love Him, de The ­Tortured Poets Department, seu 11º álbum, é uma história completa de amor frustrado, que pode fazer lembrar seu relacionamento conturbado com Matty Healy, do grupo The 1975’s.

Neste momento em que se diz repetidamente que o valor da música gravada nunca foi tão baixo e que ela é consumida, majoritariamente, como clipe no ­TikTok, Taylor Swift lança álbuns duplos que são, em si, eventos.

Numa época em que as ­pessoas se envolvem com con­teúdo altamente individualizado em seus telefones, os lançamentos, ­shows e pronunciamentos da artista tornam-se eventos de massa, enquanto fanáticos, simples fãs e curiosos correm para digerir sua última produção ou decodificar uma postagem enigmática.

Influência. Os trumpistas atacam a artista que, em 2016, ganhou o Grammy country – Imagem: Matt Sayles/PTI e Timothy A. Clary/AFP

Mas Taylor também pertence profundamente a esta era, onde a fama tornou-se mais intensa, sanguinária e inconstante. E nem tudo foi como é hoje. Seu caminho inclui uma série de dramas, conflitos, o enfrentamento de um DJ assediador no tribunal, em 2017, e clímax de relações-públicas em que o avatar de Taylor levou uma surra.

As estrelas são, até certo ponto, personagens bidimensionais, projeções. Mas as estrelas também são espelhos, refletindo o que queremos – ou precisamos – ver. E o que muitos fãs de Taylor veem é uma mulher cujas composições refletem suas preocupações. Ela escreve sobre a expectativa e as decepções do amor romântico, privilegiando a intensidade da experiência feminina, mas também todos os aspectos de sua complexa história.

Mas, se sua saga distorce o feminino, seu feminismo tem falhas e tem sido criticado por sua palidez, apesar de alguma ação oportuna nas redes sociais na época de #BlackLivesMatter e da amizade com Beyoncé.

Mas a chave para seu predomínio é sua própria história: Taylor foi cancelada e ressuscitada como uma fênix – ou uma heroína pós-moderna. Ela sobreviveu a agressões físicas, jurídicas e financeiras, e provou que os medos são superáveis.

Todo entretenimento é, queiramos ou não, uma distração de coisas mais importantes. Não por acaso, os circos tradicionalmente ficam em segundo lugar, depois do pão, na hierarquia das necessidades para evitar-se a queda na anarquia. Mas precisamos deles. E Taylor Swift é a mestre de cerimônias de um circo que muitas cidades têm parado para ver. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma celebridade da era pós-mídia’

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