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A música em busca de telas

Na próxima semana, um conjunto significativo de documentários musicais estreia no In-Edit. Que ciclo de vida têm esses filmes depois do festival?

A música em busca de telas
A música em busca de telas
Vitrine. No Rastro do Pé de Bode, sobre a sanfona de oito baixos, e Germano Mathias – O Catedrático do Samba estão entre os selecionados do In-Edit 2024 – Imagem: Canal Brasil e Umbigada/TVE/IRDEB/GOVBA
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A profusão de documentários propiciada pelas facilidades do digital veio acompanhada, nas duas últimas décadas, de uma linhagem específica e numerosa dentro do gênero: a de filmes ligados à música. Sabe-se, porém, que a maioria esmagadora desses títulos circula somente em mostras e espaços de acesso restrito, longe das grandes audiências.

Nesse contexto, o In-Edit, Festival Internacional do Documentário Musical, criado em 2003 e realizado em diferentes cidades do mundo, tornou-se uma vitrine de prestígio. No Brasil, a 16ª edição do evento acontece em São Paulo, de 12 a 23 de junho, e reúne 12 filmes brasileiros e 20 internacionais ainda inéditos no circuito comercial.

Estão entre os selecionados nacionais O Homem Crocodilo, de Rodrigo Grota, mergulho no universo de Arrigo Barnabé; Luiz Melodia, no Coração do Brasil, de Alessandra Dorgan, que estreou em abril no É Tudo Verdade; Germano Mathias – O Catedrático do Samba, de Caue Angeli e Hernani de Oliveira Ramos, sobre um dos modeladores do samba urbano paulistano; Moacyr Luz, O Embaixador Dessa Cidade, de Tarsilla Alves, retrato de um expoente do cancioneiro carioca; e Funk Favela, de Kenya Zanatta, que mostra as origens e contradições do movimento.

Chama atenção ainda No Rastro do Pé de Bode, de Marcelo Rabelo, que ganhou, em março, três dos quatro prêmios aos quais concorria no Panorama Internacional Coisa de Cinema, da Bahia. O filme resgata a sanfona de oito baixos, instrumento fundamental para o desenvolvimento do forró no Nordeste.

Antes de ganhar a tela grande, No Rastro do Pé de Bode passou na TVE Bahia. Sabe-se, porém, que muitos dos filmes selecionados para os festivais brasileiros acabam, depois das sessões nesses eventos, fadados a certa invisibilidade. De acordo com o Observatório do Cinema e do Audiovisual (OCA-Ancine), os documentários representaram, em 2023, 33,9% do total de filmes brasileiros lançados nos cinemas, mas responderam por apenas 4,8% dos ingressos vendidos.

Uma pergunta que se coloca, diante desses dados, é: que ciclo de vida tiveram os filmes selecionados para edições anteriores do In-Edit, em especial aqueles premiados e considerados significativos no espectro da música e do registro cultural?

Manguebit, de Jura Capela, foi lançado em 2021 no Festival do Rio, na esteira das comemorações de três décadas do movimento homônimo e venceu a competição nacional do In-Edit 2022. No fim desse mesmo ano, foi exibido nos canais fechados Cine Brasil TV e Canal Brasil – cabe lembrar que a Lei da TV Paga, de 2011, estabeleceu que, para cada três canais estrangeiros, as operadoras devem oferecer um nacional.

Depois disso, o retrato de um dos mais importantes movimentos musicais do País, surgido no Recife, na década de 1990, passou a ter exibições esporádicas em cineclubes e sessões especiais.

As plataformas de streaming têm apostado também em produções próprias do gênero

Na mesma edição da qual o ­Manguebit saiu premiado, foi exibido Belchior – ­Apenas um Coração Selvagem, de ­Natália Dias e Camilo Cavalcanti. O filme havia estreado no É Tudo Verdade de 2022, com expectativa alta, mas recepção fria. Seguiu então para o canal Curta!, também na TV Paga, em 2023, e hoje integra o catálogo do Globoplay.

O que se percebe, ao olhar para trás, é que os filmes que conseguem maior visibilidade depois do festival são muito mais exceção que regra. Uma dessas exceções é Elis & Tom, Só Tinha Que Ser com Você, de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, exibido no In-Edit do ano passado.

O documentário sobre os bastidores do clássico álbum de 1974 foi lançado pela O2Play nas salas de cinema em 2023 e visto por mais de 40 mil espectadores nas três primeiras semanas. Curiosamente, no entanto, o vencedor do festival de 2023, Terrua Pará, de Jorane de Castro, que mostra a diversidade musical amazônica, ainda carece de uma exposição à altura da cena que retrata.

Outros dois documentários reveladores de cenários musicais regionais, apresentados em 2023, As Origens da Lambada, de Sonia Ferro e Félix Robatto, e Mostra Reverbo, de Mário de Almeida, tampouco conseguiram outras janelas relevantes.

O primeiro mostra de que forma a fusão de ritmos paraenses desaguou no gênero musical de enorme sucesso internacional, algo pouco visto na história da música brasileira. O filme quase não teve circulação e seu produtor até pouco tempo negociava o licenciamento para a tevê aberta. Já Mostra Reverbo, que retrata o bem-sucedido agrupamento de criação musical emergido no Recife, em 2017, limitou-se, pós-In-Edit, a poucas exibições na capital pernambucana.

Enquanto isso, multiplicam-se, nas plataformas de streaming, produções próprias, como Sullivan & Massadas: Retratos e Canções, do Globoplay, e Se Eu Fosse Luíza Sonza, da Netflix. Em breve, uma série sobre Marília Mendonça deve estrear na Amazon Prime Video.

Há, ainda, os artistas que resolveram autoproduzir-se e lançar documentários sobre si mesmos. Caetano Veloso disponibilizou no YouTube, em 2023, uma entrevista a Charles Gavin sobre o seu último álbum autoral, Meu Coco (2021). O vídeo teve 72 mil visualizações. Boa parte dos documentários fica abaixo dos 5 mil ingressos nos cinemas.

É inegável que a narrativa audiovisual musical se tornou uma peça-chave tanto na indústria audiovisual quanto na fonográfica. O vigor do segmento não se traduz, no entanto, na visibilidade de muitos desses projetos, que desaparecem na mesma velocidade com que surgem. •


*Colaborou Ana Paula Sousa.

Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A música em busca de telas’

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