Mundo
Fiel da balança
Meloni projeta uma imagem moderada fora da Itália e será decisiva nas eleições europeias


Quando se tornou primeira-ministra da Itália, em outubro de 2022, Giorgia Meloni parecia o pior pesadelo de Bruxelas. Até então, a impetuosa líder do Irmãos da Itália, um partido com raízes neofascistas, parecia tudo menos amiga da União Europeia. Durante anos, os protestos contra o bloco foram as fichas de jogo de Meloni: o euro equivalia à escravatura, a Comissão Europeia era efetivamente um agiota. “Derrubem esta UE”, ela pediu na conferência conservadora CPAC de 2019, nos Estados Unidos.
Quando assumiu o cargo, no Palazzo Chigi, os partidos de extrema-direita de toda a Europa saudaram sua vitória, à espera de que a nova líder em Roma promovesse a agenda nacionalista e se somasse a nomes como Viktor Orbán, da Hungria, na luta contra a burocracia de Bruxelas. Para surpresa de muitos, Meloni não fez isso. A nova primeira-ministra italiana provou, ao menos superficialmente, ser uma europeia construtiva, em parte pelo fato de a Itália precisar de bilhões em fundos de recuperação da UE após a Covid-19, e em parte (talvez) por pretender disputar um jogo mais longo.
Depois das eleições europeias, entre 6 e 9 de junho, que provavelmente levarão bem mais eurodeputados nacional-conservadores e de extrema-direita ao Parlamento, sua influência, na Assembleia, e potencialmente sobre o Executivo, poderá ser muito maior. Cortejada tanto pela extrema-direita ressurgente, ainda que profundamente dividida, quanto pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, de centro-direita, Meloni surgiu como uma possível fazedora de reis que poderá acabar por influenciar o rumo da União Europeia em diversas questões fundamentais.
Até os adversários admitem que ela agiu de forma inteligente. Sua primeira viagem ao exterior como primeira-ministra foi a Bruxelas, onde atuou de modo positivo. Desde então, Meloni tem sido fundamental para garantir um acordo há muito aguardado sobre a reforma das regras de asilo da União Europeia. A premier italiana viajou com Von der Leyen em três ocasiões para o Norte da África e assinou acordos com Egito e Tunísia para retardar a partida de migrantes.
Crucialmente, Meloni ofereceu apoio constante à Ucrânia e críticas incondicionais à Rússia. Só essa postura a distinguiu de nomes como Marine Le Pen, da França, e de outras figuras de extrema-direita que tradicionalmente têm sido amigas de Moscou. E ela tem sido inestimável para trazer a Hungria a bordo, tornando-se conhecida como “a sussurradora de Orbán”.
Será ela capaz de forjar uma aliança do centro com a extrema-direita?
Tudo isso foi encantador para Von der Leyen, que, dado o aumento esperado na representação da extrema-direita no Parlamento, poderá muito bem precisar dos votos de alguns deles para garantir seu segundo mandato de cinco anos. O Partido Popular Europeu (PPE, de centro-direita) de Von der Leyen deverá continuar a ser o maior no Parlamento, seguido pelos Socialistas e Democratas, de centro-esquerda, e pelo grupo liberal Renovar, mas nem todos os eurodeputados dessa grande coligação dominante vão apoiá-lo.
Von der Leyen descartou repetidamente a possibilidade de trabalhar com alguns partidos de direita radical, entre eles o Reagrupamento Nacional de Le Pen, o Partido da Liberdade holandês, de Geert Wilders, ou o FPÖ da Áustria, todos pertencentes ao grupo parlamentar de extrema-direita Identidade e Democracia. Mas se mostra tranquila diante da hipótese de trabalhar com Meloni e alguns colegas do rival Conservadores e Reformistas Europeus (ECR), mais normalizados. “Tenho trabalhado muito bem com Giorgia Meloni”, que é “claramente pró-europeia”, destacou Von der Leyen.
A postura da comissária levou socialistas, liberais e verdes, que temem que Meloni exija uma diluição das medidas climáticas da União Europeia em troca de apoio, a alertar que vão torpedear a renomeação de Von der Leyen, se ela fechar algum acordo com a extrema-direita. A chefe da comissão poderá, então, enfrentar uma escolha. Meloni também. Durante dois anos, a italiana tem sido um modelo de respeitabilidade no palco da Europa, ao mesmo tempo que prossegue em suas guerras culturais em casa – contra o jornalismo independente, os pais do mesmo sexo e os direitos LGBTQ+. Como disse um diplomata da UE, Meloni “pode ter-se mostrado pragmática, mas é uma política convicta. E sua política ainda é de extrema-direita”. Para sublinhar esse fato, a primeira-ministra falou (online) numa “grande convenção patriótica”, em Madri, no mês passado.
Le Pen, posteriormente apoiada por Orbán, apelou recentemente à colega para unir as forças nacionalistas e de extrema-direita da Europa num “supergrupo” parlamentar. Dadas as suas intensas rivalidades, principalmente em relação à Ucrânia, é muito improvável. Mas é, certamente, imaginável alguma constelação de partidos do ECR nacional-conservador que possa ser palatável para grande parte do PPE de centro-direita de Von der Leyen, ao menos em algumas grandes questões, e tal constelação seria claramente liderada por Meloni. Até agora, ela manteve a pólvora seca, ao recusar-se a especular sobre uma aliança com Von der Leyen ou Le Pen, mas falou abertamente sobre “mudar a imagem europeia” e “construir maioria diferente no Parlamento Europeu”.
Se conseguir construir uma ponte entre os conservadores da Europa e ao menos parte da sua extrema-direita, Meloni poderá efetuar uma mudança bastante radical na condução da UE em questões vitais, como as mudanças climáticas, a ampliação do bloco e a imigração. Talvez seja esse o seu plano. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fiel da balança’
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