Economia
O óbvio ululante
Temos o dever de preservar o planeta ou a riqueza dos bilionários?


A discussão sobre a tributação de grandes fortunas é cada vez mais urgente, diante dos desafios impostos pelas mudanças climáticas. Estudos mostram o quanto os países deixam de arrecadar ao preservar seus bilionários do pagamento de impostos justos. Essa informação foi confirmada no último encontro da Trilha Financeira do G-20, em Brasília, quando o Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da USP revelou que uma cobrança de 2% sobre a riqueza de 0,2% dos brasileiros mais ricos poderia gerar uma receita anual de 41,9 bilhões de reais.
Quando os noticiários nos mostram as consequências das inundações no Rio Grande do Sul, não podemos deixar de pensar no quanto esse orçamento seria útil agora para a reconstrução do estado. Mas ele não existe. Para efeito de comparação, os 41,9 bilhões de reais não taxados seriam suficientes para aumentar em mais de dez vezes o orçamento de 2023 do Ministério do Meio Ambiente, que foi de apenas 4,3 bilhões.
Mais uma vez, é importante explicar quem são os super-ricos aos quais nos referimos. Todas as vezes que falamos em aumento de tributação, uma parcela da classe média insiste em acreditar que estamos nos referindo a ela. Calma. Não é sobre vocês ou suas famílias, e sim sobre um reduzido número de brasileiros, 267.460 no total, que possuem um patrimônio declarado superior a 13 milhões de reais e uma renda média mensal de 218 mil. São estes os 0,2% mais ricos mencionados no estudo da USP.
A maior parte da riqueza dos super-ricos é composta de ativos financeiros, como ações de empresas listadas na Bolsa de Valores e fundos de investimentos, que atualmente não são tributados de maneira justa. Enquanto a classe média paga alíquotas progressivas que podem chegar a 27,5% sobre os salários, esses 0,2% mais ricos pagam apenas 0,8% de sua riqueza em Imposto de Renda, devido a meios legais de isenção, como a não tributação sobre os dividendos pagos pelas empresas onde eles são acionistas. Isso cria uma desigualdade fiscal gritante, pois aqueles com maiores recursos contribuem menos, proporcionalmente, do que os milhões de brasileiros e brasileiras que realizam um trabalho assalariado.
Para além do Brasil, há pesquisas no exterior sobre a implementação de um imposto global sobre grandes fortunas. O economista francês Gabriel Zucman, professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos EUA, argumenta que o ideal seria a criação de um acordo internacional entre os países, a fim de evitar a evasão fiscal por meio da movimentação de riquezas entre eles. Essa não é uma ideia utópica. Em 2021, 140 países concordaram em fazer uma taxação mínima sobre empresas multinacionais, de acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Por aqui ou pelo mundo afora, é igualmente inadmissível que os abastados contribuam muito mais para a poluição do planeta, enquanto os pobres sofrem os impactos do aquecimento global. Um estudo da Oxfam revelou que o 1% mais rico do mundo é responsável por 16% das emissões globais de dióxido de carbono, o mesmo volume gerado por 5 bilhões de habitantes (dois terços da humanidade). Mas não é esse grupo que enfrenta as consequências mais desastrosas dos eventos climáticos extremos.
O financiamento de políticas de mitigação das mudanças climáticas depende dessa fonte de recursos. Um imposto global de 2% sobre a fortuna de bilionários no mundo arrecadaria ao menos 250 bilhões de dólares ao ano. Tal medida afetaria a renda de menos de 3 mil magnatas, mas teria um impacto significativo na redução das desigualdades e na proteção de centenas de milhões de seres humanos ameaçados pelos desastres climáticos.
O Brasil carece de recursos para lidar com as emergências climáticas e, ainda assim, reluta em taxar os super-ricos
A lógica é muito simples. Os super-ricos, ao passarem a fazer contribuições fiscais proporcionais às suas riquezas, podem ajudar a financiar a transição para uma economia mais verde e justa. Quem mais deveria pagar a conta das cidades devastadas pelas tragédias climáticas? No Brasil, as pessoas mais afetadas pelas chuvas intensas, alagamentos, secas e ciclones são pobres, predominantemente pretas e pardas. Ora, a justiça climática também precisa considerar o racismo ambiental brasileiro. E precisamos atuar para que a violência racista não continue sendo reproduzida.
Qualquer pesquisa que traçar o perfil de renda, gênero e raça das vítimas de enchentes em todo o País, que passam temporadas acampadas em abrigos públicos, pois suas casas estão em locais de risco, mostraria isso facilmente. São as mulheres, negras em sua maioria, as mais impactadas. Os eventos climáticos não se concentram nas fragilidades naturais de um território, pois, do contrário, todos os endereços seriam afetados de forma parecida. O problema mora no longo processo de marginalização de parte da sociedade.
Vivemos, portanto, o momento de repensar a lógica que valoriza o lucro acima da vida. O próprio economista Zucman defende que países que aliviam a carga tributária de pessoas super-ricas levam à instabilidade política e à corrosão das instituições democráticas no longo prazo. Por isso, temos a necessidade urgente de garantir às populações em vulnerabilidade não só a proteção contra eventos climáticos, mas também as condições de vida dignas no campo e na cidade. Há recursos para isso.
A justiça climática faz parte da tão necessária reparação histórica no Brasil e no mundo. Enquanto os super-ricos não pagarem adequadamente os impostos, o resto da população é que vai arcar, novamente, com as consequências dos próximos desastres. •
*Diretora-executiva da Oxfam Brasil.
Publicado na edição n° 1314 de CartaCapital, em 12 de junho de 2024.
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